domingo, 18 de dezembro de 2011




                                                  

Por Marcelo Ariel

Fale um pouco da sua trajectória como escritor e roteirista.

Tive a primeira ejaculação prematura aos 17 anos, quando editei um deprimente livrinho de poesia social. Numa colecção que, em 1977, representava o movimento beat em Portugal. Com muitos copos, fumos, boémia e o culto dos surrealistas e de Ginsberg e companhia, procurávamos contrariar o sufocante militantismo marxista do país, nessa altura. Aí conheci um poeta mais velho, o Levi Condinho, uma gema libertária, que me educou na música erudita e no jazz e, com uma generosidade rara, me pôs a ler filosofia e a grande poesia europeia. O Levi foi o verdadeiro saca-rolhas da ebriedade poética que me tomou. O segundo grande encontro da minha vida foi o Al Berto, que conheci aos 18 ou 19 anos. Era dez anos mais velho que eu, e parecia um músico dos Yes ou dos Led Zepellin. O Al Berto chegava da Bruxelas, onde vivia exilado e trocou os pincéis (era um excelente pintor mas destruiu quase toda a sua produção) pela escrita. E insensatamente propôs-se gastar o pecúlio de uma herança fazendo livros. Editou 8 livros, antes de se aperceber do beco em que se metera, um deles o meu segundo livro, um poema de 18 páginas num caudal rimbauldiano e numa associação tão livre como a do pára-quedista que se descobre em queda livre.
Depois entrei na Escola de Cinema, onde durante o primeiro ano apanhei bonés. Aí fui aluno do poeta João Miguel Fernandes Jorge, um dos grandes do século XX em Portugal, com quem privei uns anos, e do encenador Ricardo Pais com quem viria a colaborar em vários projectos. A dado momento repararam que me safava a escrever diálogos e comecei a ser usado para as aulas e a ser disputado pelos cineastas para “negro” dos filmes deles. Um deles, o cineasta e encenador de teatro Jorge Silva Melo, dirigia uma colecção de teatro na Imprensa Nacional e perguntou-me se não teria uma peça de teatro. Aquilo cheirou-me a dinheirito e disse imediatamente que sim. Depois tive de escrever a peça em poucos dias. Ao mesmo tempo, também para a Imprensa Nacional, fui convidado para lá colocar um livro de poesia, um livro mais dominado que o anterior. Nessa altura a Imprensa Nacional fazia 3000 exemplares e pagava os direitos de autor por inteiro à cabeça. Como tive a sorte de publicar dois livros quase ao mesmo tempo, casei logo e a embriaguez, as lecas e o casamento duraram um ano. E tenho a certeza de que o sucesso me fez muito mal.
Acabado o curso, participei de algumas rodagens de filmes, mas rapidamente me dei conta de que preferia a solidão, um queijito, vinhito e um livro de poesia, ao frenesim de andar aos molhos a tentar papar a nova assistente do guarda-roupa ou de não falhar a linha de coca à saída do plateau. E em 83 passei-me para os jornais e revistas - JL (Jornal de Letras), O Jornal, Elle, Expresso – onde escrevia critica de filmes e livros. Rapidamente, fui de novo convidado para fazer roteiros para filmes e séries documentais. A dado momento fiz parceria em vários roteiros com a escritora Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2000; mantendo paralelamente a minha actividade de jornalista cultural.
Depois de escrever inúmeros filmes, e de ficar invariavelmente em curto-circuito quando via o resultado final, resolvi ensaiar a ficção e em 1995 publiquei o meu primeiro livro de contos, Cegueira de Rios. Só em 1997 voltei à poesia, depois de uma situação de falência técnica que me obrigou a concorrer a um Concurso Literário, o Prémio Cesário Verde, que ganhei barbaramente e me aliviou de dívidas. Este livro, Carta de Ventos e Naufrágios é o primeiro livro de poemas que agora coloco na minha tábua bibliográfica, que omite os anteriores.
No ano seguinte publiquei As Cinzas de Maria Callas, 2º livro de ficção, que foi considerado pelo ensaísta António Guerreiro como um dos dez melhores livros portugueses do ano. Em 2000 editei Arte Negra, uma antologia de poesia, e envolvi-me nas edições como sócio e director editorial. Tive duas editoras – Fim de Século e Íman Edições – com as quais produzi e editei acerca de setenta livros, tendo experimentado o aveludado gosto de empobrecer feliz.
Ao mesmo tempo, meti-me no teatro e tive três peças em cena em Lisboa, uma delas, Nada do Outro Mundo, com digressões pelo país.
Em 2005, zangado com o descalabro comercial da Ímã, (apesar do excelente dossier de imprensa conseguido, o nervo comercial - as distribuidoras - não acompanhava o passo), resolvi abandonar o jornalismo e mudar de vida, e ir para Moçambique, terra de origem da minha mulher. Aqui tenho escrito filmes e séries televisivas, dado aulas na universidade, e escrito, com método e gana.
E desde então publiquei seis livros em Portugal, de poesia e prosa, com destaque para o Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, contos, que teve uma excelente fortunata crítica, e de Não se Emenda a Chuva, de poesia. Há um mês publiquei uma novela policial, O Branco das Sombras Chinesas, escrita em parceria com o escritor João Paulo Cotrim, que acabou de ser destacado na última edição do Expresso, com 4 estrelas em cinco (suponho que o 5 irá para o Proust e o Lobo Antunes) e, nesta última semana, o ensaio poético Respiro. E mantenho um blogue há um ano, raposasasul.blogspot.com, onde só trato de literaturas.

Você vê algum entrelaçamento ou simbiose entre a imagem no poema e a imagem no filme?

O Pierre Reverdy já ensinou tudo o que havia a dizer sobre isso: «A imagem é uma criação do homem. Ela não pode nascer duma comparação mas duma aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais justas e afastadas forem as relações de duas realidades em aproximação tanto mais a imagem será forte – tanto maior realidade poética e poder emotivo conterá…»Como se vê neste quadro de Chirico:



 Creio que para a poesia e o cinema isto continua a ser válido.

O que você pode dizer sobre a situação da cultura em Portugal, em Moçambique, e no mundo actual.

Nem no Xipamanine, o maior mercado informal de Maputo, encontraríamos lenha para tanta combustão. Bom, mas como na minha rua fica o quartel de bombeiros, tentemos. Acho que Portugal tem um painel de excelentes criadores neste momento – na literatura, no teatro e nas artes plásticas – mas que o quadro institucional é deprimente. Tenho curiosidade em saber como vai reagir o mundo do teatro aos cortes draconianos nos subsídios pois, historicamente, as crises geraram sempre movimentos relevantes no teatro, e espero que o estado de penúria incite ao aparecimento de uma nova geração que saiba esbofotear com qualidade. O movimento editorial está um caos e dominado por gente que não gosta de ler nem de livros, mas há muita gente a escrever e a qualidade média subiu. E os brasileiros tinham vantagem em perceber que o estereótipo do portuguesinho sisudo e muito sério não passa de um cliché, que há coisas muitas vivas a passarem-se na literatura portuguesa. O cinema está a ser desmantelado e a ser substituído por audiovisuais pouco estimulantes, i.é, iguais a todo o fastvídeo.
Em Moçambique o período é de hibernação na cultura, pois não é prioritário para os políticos. Mas há bolsas de teimosos que resistem e uma dúzia de escritores que não largam o osso e se obstinam. Emerge neste momento uma nova geração de qualidade na poesia, depois de 20 anos de marasmo que corresponderam ao igual período de tempo em que não chegou a Moçambique um livro. Literalmente. As artes-plásticas é a expressão mais forte, sendo, neste sector, uma das mais importantes de África.
Nomes absolutamente a reter, na literatura, e só falo dos vivos: João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane, Luís Carlos Patraquim e Tânia Tomé. São as minhas escolhas.

A Maldição de Ondina, o teu primeiro romance, é um livro onde o amor é maior que a política, parece-me. Você concorda com isso, e porquê? Faço esta pergunta porque também eu sou vítima de um recorte reducionista que faz o recorte sociológico do que escrevo e penso que o mesmo acontece contigo.

E agradeço que o digas porque o sinto também: o amor é, nele, o primeiro motor. Em segundo plano gostaria que o livro fosse lido como uma homenagem à literatura, claríssima, desde o momento em que falo do incrível incêndio que devastou a biblioteca de Octavio Paz, a dois anos da morte, e que constitui o meu pesadelo desde sempre, até ao sonho delirante do protagonista com Jeanne Duval, a mulata que foi amante de Baudelaire. Só por último gostaria que as pessoas reparassem que o livro é também um thriller político - o que é apenas o pretexto. Mas sou obrigado a reconhecer, que como o livro oferece uma visão menos esperada sobre “a África dourada” que enxameia os imaginários românticos de meio mundo, talvez a dimensão política ressalte. Também eu, eivado por uma mentalidade de esquerda, aterrei aqui prenhe de paternalismo e em ruptura com “os racionalismos europeus”, para dar rapidamente conta de que afinal tinha lido mal O Pensamento Selvagem,do Lévy-Strauss. Como ele explica, o que se passa é que existem diferentes tipos de racionalismo e diferentes protocolos para a canalhice. Porque, assegura, o Ocidente não tem o exclusivo do mal.
Mas se o livro, o meu, tiver que sobreviver será pelos dois primeiros aspectos, I hope.

Você conviveu durante muito tempo com os maiores escritores-poetas de Portugal. Fale um pouco sobre esta convivência, em especial sobre a tua convivência com Herberto Helder e Al Berto.

O Al Berto era um poeta na vida e na escrita, uma criatura de uma alegria, duma intensidade humana e dum humor ímpares. Quem lidou de perto com ele, nos primeiros anos, antes da consagração unânime, não deixa de recordar a imaginação que punha no mais pequeno gesto, duma fantasia esfuziante. Contaram-me vários episódios com o Murilo Mendes que me faz pensar que seria do mesmo tipo. Uma vez o Al Berto foi a França a um encontro de escritores com a Agustina Bessa Luís, uma escritora mais velha que atraía o fascínio de todos mas cuja inteligência ferina causava um certo temor. E toda a gente a rodeava com paninhos quentes, com muito cuidado e reserva, pondo os lábios em bico e fazendo uso só de palavras elevadas. O Al Berto que estava na mesa com ela numa sessão pública deu conta de que o arranjo de rosas com que a organização havia decorado a mesa a incomodava porque a Agustina era baixinha e não via bem o público para quem lia. E então, espontaneamente, pegou no microfone e perguntou para o ar, no seu melhor francês, “alguém pode tirar daqui estas couves?”. Ficaram imediatamente amigos. Noutra ocasião, numa entrevista televisiva, perguntaram-lhe porque era ele homossexual, e ele respondeu, olhando o espectador nos olhos: «É um problema de hipotálamo, estou apaixonado pelo meu hipotálamo.» Por isso se tornou um ícone gay em Portugal, era absolutamente descontraído e natural na manifestação da sua sexualidade. E, ao contrário do que depois se tornou moda em Portugal, não associava à sua escolha sexual uma necessidade de proselitismo… Também a forma como morreu, as sua últimas entrevistas públicas, antes de o cancro o matar, foram um exemplo de dignidade e de coragem. Foi um homem tocado pela Graça, daqueles poucos de uma vida em quem reconhecemos uma pessoa plena. Aliás, era de tal forma irradiante a sua presença que nós, os amigos mais próximos, sentíamos às vezes ligeiramente aquém a sua poesia, que ganhou em densidade e fulgor com os anos.  
O Herberto é diferente. Frequentámos durante dez anos a mesma tertúlia e tivemos alguma comunhão e partilhas de livros e leituras. Havia um carinho mútuo, que ele quis “legitimar” quando espontaneamente aceitou colaborar na minha revista literária,Construções Portuárias, ele que sempre foi tão selectivo e cuidadoso. Mas era necessariamente uma intimidade muito diferente, um pouco mais contida, sobretudo por causa do seu temperamento que, embora caloroso, é mais intermitente e menos expansivo que o Al Berto.
Um aspecto curioso é que, apesar da alquimia profunda da sua linguagem, o Herberto alterna com grande à vontade a conversa sobre temas “nobres” e “espirituais” com o papo sobre coisas mundanas e quando está bem disposto e se solta o Herberto é capaz de grandes informalidades e adora uma boa conversa “entre homens” sobre sexo e mulheres.
Uma diferença separa estes dois poetas: o Al Alberto era um homem mais da vida, enquanto o Herberto é mais mallarmeniano, mais atravessado pelo livro; o Al Berto talvez fosse interiormente mais sereno que o poeta mais velho que é, surpreendentemente, mais inseguro. Mas há uma coisa em que o Herberto supera todos os poetas que conheci: é um homem permanentemente curioso, sempre em busca da perplexidade, que ama e não teme o novo e que quer ler tudo sobre tudo. Claro que como toda a gente também relê, mas ao Herberto galvaniza sobretudo o diálogo com a exterioridade e é nele que procura o seu lugar. Neste aspecto, o Herberto morrerá absolutamente novo.   

Você conhece o trabalho do cantor de rap Azagaia, em Moçambique, e o do cineasta Pedro Costa? O que acha da obra destes dois artistas, que de alguma forma utilizam a arte como um elemento de oposição política.

O Azagaia é um jovem corajoso mas que tem andado discreto nos últimos tempos, talvez por pressão política, como tem acontecido a muitos moçambicanos que começam como críticos intrépidos e depois ou são cooptados pelo partido do poder ou são vítimas de um ostracismo social e profissional terríveis. Ele já foi interrogado duas vezes pela Polícia Política e há poucos meses estenderam-lhe uma armadilha com droga para o desautorizarem. Penso que o seu sucesso é sobretudo urbano, pois é um jovem muito acarinhado pela imprensa da oposição, mas tem menor penetração nas camadas populares que têm uma mentalidade muito condicionada pelo mimetismo ou a coacção social. Como artista é muito ingénuo e tem muito a crescer, do mesmo modo que as suas letras, muito directas, ganhariam se ele fosse um leitor mais assíduo de poesia.
O Pedro Costa é de uma outra solidez. Fizemos juntos a Escola de Cinema, e sempre foi um tipo com uma visão e uma obstinação em persegui-la. O seu percurso, estético, político, ético, é exemplar e merece-me toda a estima. Neste momento será um dos faróis de referência de um cinema de autor que a frivolidade dos tempos e a ditadura dos mercados tende a sufocar e a denegrir na Europa. Mas como ele é um intransigente, quem vai ceder é o mercado, é uma questão de tempo. Veja-se o que se passou com o Manuel de Oliveira, que esteve 30 anos sem filmar. Devo ao Pedro três autores: Ramuz, Soupault e Elio Vitorini, e ele deve-me duas entrevistas aguerridas que lhe fiz nos jornais, e um poema que lhe dediquei, saído noArte Negra:

GINGAL, A MEIO CAMINHO DA SUA VIDA
                                     para o Pedro Costa
Entre eu e as luzes há um rio preto.
Imitação dos que extraviaram Ulisses
pela galhofa de deuses
cegos. Um rio preto.
Escrever é uma coisa tão pouca.
De umas vezes garantir fiado,
de outras amanhecer a medo
no rasgão que imprime a cidade
ao longe. Infindável rebentação.
Falo de uma insónia, claro,
dos olhos que desabrigam
lá dentro toda a memória,
quando se fica a roer um os-
so sob um céu de sépia

O Gingal é o longo cais que fica do outro lado do Tejo em Lisboa, e que está pejado de tabernas que eu e o Pedro gostávamos de frequentar.

Fale um pouco sobre a génese de A Maldição de Ondina e sobre o imbróglio burocrático que impediu a tua participação no Congresso Brasileiro de Escritores, realizado recentemente no Brasil.

Maldição de Ondina nasceu como um conto largo que se foi apoderando de mim e espalhando as suas metástases. O romance assentou na sua quinta versão, depois de dois anos de reescrita. O editor, o escritor Nicodemos Sena, teve a paciência de as conhecer a todas. O livro rompe com os meus livros de contos anteriores que falavam dos ritos de passagem da infância e da adolescência. E passei dos cenários urbanos de Lisboa e arredores para a realidade moçambicana. Levei três a autorizar-me escrever alguma coisa, na ficção, sobre a realidade local, e a apanhar alguma coisa do linguajar local. Não foi fácil, há cristalizações difíceis de dissolver. O livro surgiu de um sonho. Adormeci um dia a reler o D. Quixote e sonhei que ele e o Sancho voltavam à terra, após cinco anos de não serem lidos no mundo, e andavam em peregrinação pelo mundo esventravando os não-leitores. Ao pequeno-almoço escrevi uma nota sobre uma invasão da Terra por personagens de ficção que se sentiam abandonados, como se fossem espíritos a quem se deixara de prestar o tributo. Levei depois um ano a congeminar como traduzir isto numa estrutura funcional de uma ficção passada em África. 
Devo dizer que durante muito tempo hesitei atirar-me à novela porque o ritmo e o fôlego exigidos são muito distintos dos de um conto, género que domino. E espero não ter desacertado muito, o Hemingway por exemplo é muito superior como contista ao romancista que também foi.
O que me impediu a ida ao Brasil? Houve uma mudança tecnológica nos serviços de Migração de Moçambique e nessa altura “extraviaram-se” muitos processos de renovação do Dire (o BI para estrangeiros) e outros registos, o que nem sempre é admitido pela instituição. Eu fui um dos prejudicados com esta situação. E quem não colabora com “o esquema” pode ver a vida dificultada. De repente, por perda de processos, não há registos do passado do estrangeiro no país e da sua situação legalizada e desloca-se para este o ónus de provar que já teve documentos. E o estrangeiro vê-se assim empurrado para a irregularidade pela instituição que devia zelar pela sua legalização – é kafkiano. Eu tinha uma advogada há três meses a tratar do meu caso, e mercê dos documentos que tinha em meu poder que comprovavam que eu tinha razão no caso, o processo estava a correr na Migração sem atritos, embora as burocracias sejam sempre morosas nestas paragens, e, até à véspera da ida para o Brasil, a advogada dizia-me que a minha autorização de saída estava garantida. Acontece que uns dias antes mudou o Director Geral da Migração e como desconhecia os meandros do meu caso e que estava a ser tratado, ao ver o meu pedido de Autorização de Saída para assinar simplesmente indeferiu. Como isto aconteceu de forma inesperada e em cima da hora não foi possível recorrer a outra solução como pedir a intercedência do Ministro da Cultura, com quem trabalhei uns anos numa revista institucional, ou pedir uma audiência ao Director para lhe mostrar os meus documentos. Por isso pedi que travassem uma petição que andava a circular pela Net e que insinuava razões políticas para o meu impedimento de sair de Moçambique, pois isso, sim, podia acarretar-me represálias políticas. Pela mesma altura, o escritor moçambicano Mia Couto deu uma entrevista em Portugal em que afirmou simpatizar com o movimento de rebeldia dos jovens que sob o lema Indignai-vos tem corrido na Europa. Quando chegou a Moçambique tinha a ala radical da Frelimo (o Partido no poder há 38 anos) ofendida com ele, porque havia incitado à sublevação popular no país (o poder abaixo do Saahara anda preocupado com um possível efeito dominó provocado pelas revoltas populares no Norte de África) e o Mia teve de multiplicar-se em penosos e absurdos desmentidos. Este é um país onde a democracia dá os primeiros passos, titubeantes; no ano passado, no Orçamento Geral do Estado reservava-se à agricultura uma fatia menor da que era atribuída à polícia política. Não esqueçamos que aqui a taxa de corrupção é altíssima e que isso resulta em muitas deficiências nos serviços; com os esquemas que isso acarreta nas mais vulgares questões burocráticas. Conto para terminar o que aconteceu há uns meses a um amigo brasileiro, cineasta, que vivem em Moçambique há 28 anos. Um dia, ele entregou o processo para pedido de nacionalidade nos serviços respectivos. Quase um ano depois resolveu ir saber da sua situação. Chegou ao Ministério do Interior, apresentou o recibo que dava prova da entrada do seu processo e pediu um esclarecimento sobre o andamento do mesmo. Ao fim de uma hora de espera vieram informá-lo de que o processo se havia extraviado. Era melhor pedir uma segunda via, aconselharam. O que ele fez, e deram-lhe novo recibo. Um ano depois como estava sem notícias, voltou lá. Esteve de novo uma hora à espera enquanto o funcionário tentava em vão localizar o processo. E como via que ele não estava disposto a sair sem notícias, encolheu os ombros, e admitiu, apontando para um armário nas costas: “só se estiver neste armário!”. Quando abriu o armário, este parecia a gruta do Ali Babá abarrotada de processos. Vasculhou, vasculhou e lá encontrou uma pasta com o nome dele. E vitorioso veio mostrar ao meu amigo. Começaram a verificar os papéis e rapidamente conclui o meu amigo, “ah, mas este é o primeiro processo, o que estava perdido…e não o da segunda via, deste recibo!”. Não se desmancha o funcionário: “E não tinha dado entrada, não sei porquê. Vamos aproveitar e damos entrada a este…”. Daqui a um ano o meu amigo brasileiro voltará ao ataque… Seria tudo muito diferente se ele aceitasse pagar qualquer coisinha… É isto que se passa, grave, mas do simples foro da incompetência e do relaxe.      

O que você acha do acordo ortográfico e da chamada lusofonia.

O acordo não me ofende nem me arrefece. Como dizia o Deleuze há que gaguejar na língua para que a língua no seu próprio interior se torne bilingue, isto é, cito-o, o multilinguismo não é apenas a posse de vários sistemas mas antes de tudo a linha de fuga ou de variação que afecta cada sistema impedindo-o de ser homogéneo. Isto que sublinho é o que me importa no manejo de uma língua, é o que sempre foi feito por alguns e é o que continuará a ser feito, e isto não há acordo que o impeça. Agora, há o aspecto político da questão e aí é claro que o acordo existe para favorecer a indústria do livro brasileira, o resto são balelas.
Quanto à lusofonia manifesto reservas. Não sei como é no Brasil mas em Portugal fala-se em lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em «lusofonia» num país em que só oito por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo. Aparentemente falamos a mesma língua, mas os códigos e protocolos da língua e os valores dos seus significados são tão díspares que nos sentimos num perpétuo território estrangeiro, o qual está minado pelos equívocos e mal-entendidos com que a aparência de uma língua comum, transparente, tornou bélico o terreno.
A lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério.
É como Prémio Camões. Em 2001 fui ao Brasil, tinha acabado de lançar Inferno, que escrevi em parceria com a Maria Velho da Costa, a quem fora atribuído o prémio há 2 anos atrás. Fui a várias editoras brasileiras tentar vender esse e outros livros dela. Ninguém sabia quem ela era. O eco do Prémio Camões não tinha saído das embaixadas. É patético. Não entender a inocuidade disto é grave, desajustado e redutor. Por isso a lusofonia lembra-me a deselegância de estar a martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer.
O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.

Cite cinco filmes e cinco livros essenciais para a sua formação e diga porquê.

Vou-me cingir à prosa. Orlando, de Virgínia Woolf: fascina-me a metamorfose como tema e processo e a escrita de madame Woolf é avassaladora. Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry: foi uma das heranças do Al Berto, deixou-me esta semente lunar no sangue. Trópico de Capricórnio, de Henri Miller: um dos livros que salvou a minha adolescência desvalida, de pobre sem esperança. A Música do Acaso, de Paul Auster: gosto de todo o Auster, e da sua fantástica imaginação, mas este deixou-me em levitação. Heróis e Túmulos, de Ernesto Sabato: bastaria oRelatório de Cegos para ser para mim um dos romances do século XX. E não posso esquecer todo o Cortázar, todo o Nabokov, todo o Kadaré, toda a Clarice Lispector, todo o Gombrowicz.
Filmes: Amarcord, de Fellini. O Fellini é mais um daqueles que me imita em tudo, até na tentativa de não ser eu. Viridiana, de Buñuel: que me decidiu a nunca ter cartão de nenhum Partido porque me fez perceber que os pobres não são assim tão bonzinhos; Irma, La Douce, de Billy Wilder, e Some Come Running, de Vincent Minelli: a Shirley MacLaine bastar-me-ia, mas depois já os guiões, a elegância, o ritmo, o humor. Táxi Driver, de Scorcese: porque desafortunadamente não o escrevi, o que é uma das provas da inexistência de Deus.
Junte-se todo o John Cassavetes, metade do Godard, todo o Tarkovski, o Woody Allen, o Lawrence Kasdan, o Bergaman, o Clint Eastwood, sei lá…

Fale um pouco sobre Respiro, o seu último livro lançado em Moçambique e sobre os seus planos para o futuro recente, no terreno da criação artística.    

O Respiro não foi lançado em Moçambique mas sim em Portugal. É um ensaio onde procuro explicar que vivemos todos em níveis de realidade e em graus de percepção da mesma muito distintos pelo que não há uma realidade unidimensional euma ou a poesia, mas antes diferentes manifestações expressivas de modos de penetração em diferentes tipos de realidade. Corolariamente, tento insinuar que há poesia do imaginário, e poesia do imaginal, consoante os tedodolitos. Enfim, nada de muito importante. Um pequeno excerto:
«Lembremos a hipótese que convoquei num prefácio a uma tradução de Juan Luís Panero: há, no que toca ao modo como se relacionam com a linguagem, duas linhagens de poetas. Para uma família de poetas a linguagem é um instrumento auxiliar para criar objectos verbais que se manifestam em declarações espirituais, psicológicas ou políticas. Este tipo de poetas serve-se das palavras para expressar ou digladiar os seus conflitos e visões.
Existe por outro lado uma outra prática da poesia onde a linguagem é em si mesma, um problema, um conflito já existente, uma dobra: «Suscitar a forma do pensamento,/ recortá-la segundo uma medida./ Penso num alfaiate/ que seja o seu próprio pano.», escreve o italiano Valerio Magreli. Ou atentemos noutro poema, de Herberto Helder: « (...) E é tão compacta a malha/ da carne tão/ rude, O fluxo que se/ desenreda, Como se o corpo todo fosse uma veia,/ Uma traqueia de onde irrompesse um som/ - árduo árduo/ e agudo,/ E a boca respirando se tornasse/ numa bolha, O rosto como uma víscera,/ Que brilhasse varada pelo sangue: alta/ e ríspida: e brilhasse ainda/ quando o dia transparente transpusesse: / porta/ a porta:/ tudo, As mãos: a cabeça/ entre as mãos: a voz/ entre fôlego e escrita, Nas cavernas/ do mundo».
Neste tipo de poesia o poder da palavra germina a partir do seu próprio fulcro, não traduz outra coisa; o poeta não se serve das palavras para traduzir uma “realidade” pré-existente, antes intui, como diz Octávio Paz, o autor da hipótese em presença, que elas são o referente e são tão reais como as árvores, as casas, os aviões e as paixões. As palavras aqui não são signos que representam mas o concreto das coisas tal e qual de uma “outra” realidade.
Um poeta desta linhagem, Valère Novarina, chega ao extremo de afiançar que a palavra nos é mais interior que todos os órgãos internos. E relata: o Bucha e o Estica estão sentados num banco de um jardim, de costas para um arbusto. Um carteirista introduz a mão por entre a ramagem e tenta tirar a carteira do bolso interior do casaco do Estica. Só que este, entretido com as suas mãos num devaneio patético, toma a mão do ladrão por uma das suas, com todas as implicações que se enredam numa multiplicação das mãos.
A genialidade do gag advém do dilema de que é tomado o Estica na escolha obrigatória de uma das mãos – visto que aparentemente tem três e só se lembra de ter tido duas. Qual das duas são as suas e qual é a que terá de dispensar, é a sua primeira interrogação, mas depois vem-lhe outra dúvida mais fecunda: e porque não ter três mãos? E começa a olhar para a terceira mão com delícia, como algo que sempre lhe pertenceu naturalmente, ao ponto de ter tirado uma lima do bolso do casaco para lhe arranjar as unhas, para essa mão ficar como as outras. E está a limar a unha quando o Bucha lhe bate na mão que se entrega a essa tarefa e lhe faz entender – porque o Gordo também não acha estranho que o Estica de repente tenha três mãos – que o mais rico dessa mão nova é ser diferente das outras. E o Estica fica todo contente por poder ter uma terceira mão tão diferente. Aceitar a Graça desta terceira mão, equivale, para mim - porque é uma Graça aceitar oestranho como parte de nós - ao trajecto que o poeta russo Mandelstam sinalizou nesta fórmula: Como Orfeu, o poeta é aquele que percorreu toda a distância do profano ao sagrado e cuja memória é vidência
Quanto a projectos futuros, em 2012 vou realizar um documentário de 50 minutos sobre a arte moçambicana, isto está certo. Vou começar a rodar em Março. Espero voltar finalmente ao Brasil e tenciono fechar-me a escrever um dos dois romances que me agitam o escuro esplendor das gavetas. Não sei ainda qual deles terá um maior ímpeto para o parto.

Quais podem ser os pontos de contacto entre o Brasil e Moçambique, se é que eles existem. Você poderia falar um pouco sobre isso e o que o levou a trocar Portugal por Moçambique?

Bom, o que me trouxe para Moçambique resume-se a dois motivos.
Na altura estava muito desapontado pois tinha feito um enorme esforço para montar um projecto editorial que foi reconhecido como de bastante qualidade mas que caiu por absoluta falta de ética das distribuidoras em Portugal, sem que eu conseguisse que nenhum jornal fosse sensível ao problema grave que já se desenhava no sector e denunciasse a situação que descambou no absoluto marasmo e carnificina que é o mundo da edição neste momento em Portugal. Tive de ganhar mais um prémio literário para pagar as últimas dívidas à tipografia, despedi-me do Expresso e vim-me embora. O segundo motivo é pessoal: tenho o destino de amar uma moçambicana. A vida ser-me-ia facilitada se tivesse derivado na geografia afectiva para o norte e para a Noruega por exemplo, ou talvez para a Escócia, onde alternaria o golfe e o alpinismo. Calhou-me uma indiana de Moçambique, eis-me conformado, e moderadamente feliz na minha conformação, ainda que tenha descoberto que detesto palmeiras e coqueiros – coisinha mais monótona não há. Uma palmeira, cuja sombra nem consegue acoitar um encontro clandestino, não chega a ser uma árvore: é um pêlo púbico agrafado numa folha azul.
Quantos aos pontos de contacto, há uma coisa surpreendente e que entra pelos olhos dentro para quem conhece: Maputo é uma cidade extremamente parecida com Belém do Pará. Em tudo, do urbanismo ao ambiente social. Só falta aqui a inteligência do Benedito Nunes. Depois há uma inassumida cultura de mestiçagens, um cosmopolitismo apesar da descrença em si mesmo, uma mecânica gingada do “deixa-andar” que penso serem afins em Moçambique e no Brasil. Assim como um semelhante gosto pela dança e a música. Mas claro que em termos de desenvolvimento será o Brasil dos anos 40, depois de rasgado por uma guerra civil que tivesse destruído metade das infra-estruturas.

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