quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Um conto de Manoel Herzog

Foi no velório de Carlos Melo que Theófilo ouviu a primeira narrativa interessante sobre urubus. No dia em que o prefeito tomou os tiros, Carlos sofreu o infarto fulminante. Saído do de Agda, o urubu agora morava no telhado dele. Depois desse dia, Theófilo começou a ligar a presença dos urubus com a morte.

Velório é ocasião de contar piadas e histórias. Lira, pai de todos os vereadores – o fora por sete mandatos consecutivos -  aproximou-se da roda de amigos do morto e, olhando para um urubu pousado sobre um túmulo – o cemitério é ao lado do velório – iniciou a contação:
 
“Este é um peba, mes chères. Vêem o amarelo na cabeça? Vive oitocentos anos. Tem outro tipo de peba, de cabeça vermelha, vive uns mil....”

Naquele dia aprendeu coisas. A saber, que há três espécies de urubus, sendo que o peba, pequeno corvo da cabeça vermelha ou amarela, vive de oitocentos a mil anos.
 
“Há um segundo tipo, o camiranga, todo negro, vive nas matas e é maior, um urubu circunspecto, chega a viver mil e quinhentos anos. E lá, no topo da corte, fica o Urubu-Rei, aquele de penas brancas e cabeça colorida. Le Vautour-Roi! Vive bem mais de dois mil anos. Os pouquíssimos Urubus-Reis que há no mundo - menos de uma centena - vêm desde os tempos em que Jesus Cristo andou por aqui. C’est incroiable!” – discorria o Lira.

Lira era nordestino, migrante de origem humilde. Novo rico ou, como ele próprio gostava de dizer, nouveau riche. Com os votos dos conterrâneos, por pequenos favores que lhes prestava, mantinha-se no cargo. Fez fortuna desencaminhando dinheiro público. Aficcionado pela França, ia a Paris a cada semestre, gastar fácil o que fácil vinha. Inventava histórias fantásticas. Dizia que a verdadeira Paris era a ilha no meio do Sena, onde ficava o túmulo do Grão-Mestre, queimado pela fogueira da Inquisição. Um dia o Mestre reviveria do fogo, surgido qual ave Fênix, Urubu-Rei.

Segundo Lira, por viverem tanto, a procriação dos urubus era evento raro. Ovo de urubu, então, uma preciosidade - a fêmea do bicho, ao longo dos séculos em que trilhava a existência, produzia no máximo dois, isto na vez única em que se dignava a acasalar. Os urubus sublimam o sexo.

André, cheio de associações, inquiriu o vereador:

“Porra Lira, é que nem a hierarquia da confraria! O peba é aprendiz, o camiranga companheiro e o rei o mestre!”

“Não é bem assim...” – retrucou o político. – “Podemos dizer que o peba de cabeça amarela é aprendiz, o peba de cabeça vermelha, grau intermediário, companheiro, e o camiranga, este sim, todo negro, conhecedor da morte, é Le Maître. Se veste de preto, igual aos ternos dos senhores jovens vereadores.” – ria – “Trabalha no escuro...”

“E o Urubu-Rei, então, é o quê?”

“ Seria o Grão-Mestre, mon chèr, uma figura única na Ordem, um príncipe oculto, por isso a vestimenta diferenciada...”

Depois dos sete mandatos, Lira perdeu o senso, deu de falar o que pensava, era tomado por louco. Um louco engraçado, detinha certa imunidade diplomática. Aboliu o terno preto, só se vestia, agora, de branco.

“ Lira, meu venerável, você é o nosso Grão-Mestre! Urubu-Rei!” – exaltado, Theófilo aclamou.
 
O velho vereador foi extremamente original quando falou da longevidade das aves negras. Nos compêndios de zoologia que, impressionado com o discurso, Theófilo foi consultar, viu que não viviam assim tantos anos, ao menos a ciência assim não considerava. Analogia que encontrou para os oitocentos, mil e quinhentos e dois mil anos de vida anos foi a altura de voo a que cada qualidade de urubu se arrojava. O peba, realmente, viu nos livros, voava a oitocentos metros do chão, pois incumbia-lhe avistar a carcaça. Os camirangas, urubus selvagens, voavam bem acima, mil e quinhentos e, depois que os servis e urbanos pebas se davam ao trabalho de achar a carniça, baixavam pra comer. Dois mil metros e mais acima pairava no ar, soberano, o Rei, a olhar camirangas e pebas que flanavam abaixo de si. Ficava esperando o pessoal descer, depois do repasto localizado. Estes obedeciam tão cegamente a hierarquia da Natureza que, uma vez pousados, não tocavam no manjar enquanto o maioral não fizesse valer suas primícias. Ele chegava majestoso, pousava no meio da roda, iniciava o ritual da comilança. Feito um pai, começando a cortar o pernil de fim de ano.
 
Também pode ver, nos mesmos compêndios, que os ninhos dos urubus não são feitos em altos rochosos, nem tampouco em árvores lendárias de mil metros de altura. Dizem os zoólogos que o urubu choca no chão. Mais, que se reproduz com bastante freqüência, não a cada cinco séculos, e que o aumento de aterros sanitários e lixões tem proporcionado uma explosão demográfica de urubus.
 
Ele não cria nos compêndios dos cientistas. Acreditava mais na sabedoria que ouvia da boca de incultos e loucos. Preferiu a história do Lira. Acreditar que jamais haverá uma explosão demográfica de urubus, e que matar um deles é mesmo infringir uma lei do direito natural, um pecado quase que capital. Assim lhe dissera a mãe. Não se pode matar urubu.
 
Pois veio a parear o peba macho, ali pousado no túmulo próximo, uma fêmea (segundo o Lira). A parelha de abutres ficou observando o grupo, como a chancelar a fantástica história do velho vereador. Talvez sonhavam comer as vísceras do Carlos Melo, então velado.

“Le foie, le coeur, les reins...”

Uma semana antes haviam passado no hospital Theófilo, André e Heitor, vereadores de partidos aliados. Carlos Melo entrou para fazer um simples cateterismo, não saiu mais, só agora, morto. No auge da agonia, suas vísceras foram retiradas e postas fora do corpo, parece que para melhor monitorar o funcionamento. Pouco adiantou, ao que se viu – no atestado de óbito, a causa mortis: falência múltipla de órgãos. Lá estava o urubu para tragar a falência do morto, investidor comprando títulos, moeda estragada que faria valorizar na bolsa do mundo.
 
Não devemos temer os urubus, nem deles ter nojo, lembrou Theófilo, atento aos ensinamentos do Lira. São dos bichos mais nobres que há. Quem mais se dignaria a limpar a imundície da morte, galardão do pecado de toda criatura? Prestam, estas negras bestas aladas, grande serviço à Natureza. Segundo soube, (como se disse, foi pesquisar) o suco gástrico do urubu é o líquido mais corrosivo da alquimia, razão pela qual está ele habilitado a comer toda sorte de carniça sem prejuízo de sua sanidade. Não há micróbio que resista a sua bile.
 
A hierarquia dos urubus faculta aos de alta estirpe degustar podridões mais sofisticadas na frente dos outros. Ao contrário do ser humano, que privilegia os cortes dos músculos das ancas e dorsos dos animais que abate, os urubus, gourmets sofisticados, preferem vísceras.

“Monsieur le Vautour-Roi est um grand gourmet!”  - ecoava a voz do Lira.

Quando sucumbe um animal e seu corpo vem dar à beira de uma estrada, a camarilha de aves inicia o ritual de consumir a carniça. Ninguém pode comer antes do Urubu-Rei – este goza da prerrogativa de invadir, com o bico duro e cortante, os olhos do bicho morto, que degusta sozinho ante o olhar esfaimado dos comensais. Comidos os olhos, o Rei introduz no ânus do cadáver o seu bico recurvo, e começa por lá a fazer a incisão do ventre e sacar as vísceras, até se fartar.

“Le foie, le coeur, les poumons...”

Após ele, comem os camirangas, depois que o fato se foi, comem os músculos fibrosos das pernas, peito e dorso. Por fim, os pebas vão dando conta das carnes inferiores e peles, e mesmo ossos mais deglutíveis, que compartilham com hienas, onde as haja, e cães, por todo canto. Do que sobra os vermes dão conta. Há animais superiores em torpeza aos urubus. Theófilo julgava os vereadores ainda mais torpes que estes animais.

*

No restaurante Casa do Norte, dia de sessão na câmara, os três vereadores devoravam um sarapatel. Heitor relutara um pouco, achava a comida nojenta:

“ Não vou comer isso... De quê que é feito?”

“ Rim, fígado, pâncreas, tripa, pulmão de porco e sangue.”

“ Que nojo!”

“ Porra, Heitor! A base da culinária mais sofisticada do mundo, a francesa, são as vísceras. Tripoux, andouille, cassoulet... A culinária nordestina sofre inquestionável influência dos franceses neste aspecto, mon chèr. Pode comer que é chique. Charmant. Não é você que é metido a fino, bon vivant, aluno do Carlos Melo, do Lira?” – André falava sem pudor, o caldo escorrendo pelo canto da boca.

“ Querido, tenho berço. Já conhecia Montmartre antes de saber quem era Lira. Quem nunca saiu daqui foram vocês...”

“Tá, mas  hoje estamos todos nivelados. Então, bate o teu sarapatelzinho numa boa e faz de conta que está no Quartier Latin. É aqui que a gente ganha o pão, seja popular. E nada de borgonha, é cerveja mesmo. Este povo sofrido e trabalhador, comer com ele. Honrar nossos partidos! E Vossa Excelência, nobre vereador Heitor, queira abdicar de seu berço em prol desta gente humilde que o sustenta!”

Theófilo pensava nos partidos. Os de seus colegas existiam há décadas, mas viviam trocando de nomes. Eram agremiações que ele julgava podres e que, de tempos em tempos, sem poder esconder emanações deletérias, tinham que mudar de sigla, dar uma perfumada, uma afrancesada na coisa. Na essência, seguiam pelos anos sendo o mesmo sepulcro caiado.

Já o partido de Theófilo mantinha o nome de sempre. Trilhava o caminho inverso ao daqueles dos colegas de mesa. Sustentava o nome, mas a essência se havia perdido. Acarniçou-se por outra via, não era o mesmo partido, só conservava a sigla, que remetia a um passado de luta pelo povo. Theófilo sentia-se como o partido, nele se mantivera, sujeito às mudanças, às podridões que iam, ele a agremiação, acumulando. Muitos dos fundadores abandonaram ao ver o processo de putrefação.

*

O prefeito tinha levado três tiros no dia do infarto de Carlos Melo. A morte não era pra ele. Carlos, escudeiro, cumpriu a sina desenhada para o chefe. Cardíaco, submetia-se, naquele dia, a um simples cateterismo.
 
“Enfiam o catéter por baixo, pelo cu dele, e vão que nem uma desentupidora até o coração. Logo, logo ele sai, é um exame de rotina...” – falava Heitor, que não supunha a mudança de sorte do amigo. Acumulando uma série de aborrecimentos, ao saber dos tiros, ainda internado para recuperação do exame invasivo, Carlos Melo enfartou. O velho coração enegrecido não deu conta, lasso, cansado.
 
Os urubus olhavam de longe. Havia, na câmara municipal, onde a batalha política se travava, uma sorte de urubus que sorvia fluidos do povo. Theófilo e seus amigos eram pebas neste grupo. Carlos Melo, camiranga. Há quem diga que representantes destes abutres mandaram desferir no prefeito os tiros. Não mataram, o homem tinha estrela. O assessor morreu por ricocheteamento de tiros que não eram pra ele. Para sorte do mundo, estes urubus humanos (seus colegas de terno preto) não vivem tanto tempo quanto os pássaros originais – um, dois mandatos, de comum. Urubus especiais – Lira, por exemplo - elegem-se por vários.
 
*
 
A primeira vez que viu um Urubu-Rei foi no telhado da casa de Agda. Agda, filha mais velha do Lira, registre-se, foi o grande amor de sua vida. Por um destes fatos que o destino traça e que chamam casualidade, morava perto da casa do Carlos Melo. Naquele tempo nem eram amigos, ele e seu mestre, ficaram anos depois, quando Theófilo elegeu-se vereador. Conheceu-o nos meandros da política municipal. Funcionário de carreira, tramava como ninguém nos bastidores da câmara, era experto. Eleito este prefeito, chamou-o para seu homem de confiança, suporte intelectual do governo. Carlos fumava três maços por dia, bebia, caçava e  pescava. Gostava do jovem político, a quem adotou como uma espécie aprendiz, afilhado, então um passarinho imberbe, que foi ajudando a colecionar penas negras. Com Carlos Melo Theófilo aprendia artes de política, de fisgar peixes, tocaiar bichos, encurralar gente. Pescavam nas cercanias do lixão municipal, na beira do estuário, os urubus rondando. Num dos últimos dias de pescaria um deles pousou sobre a árvore em cuja sombra haviam apoitado.

“Não gosto deste bicho aqui em cima...”

“Mon chèr, deixe de bobagem... Os urubus vivem aos bandos aqui no lixão. Nós os sustentamos. Ainda ontem foi prorrogado o contrato da empresa de lixo, que ganhou, mais uma vez, a licitação. Quem mantém estes urubus somos nós mesmos, por ironia. Não devemos temê-los. Um dia vão comer a gente...”

“Continuo sentindo imensa vergonha de mim, por ter participado desta trama...”

“Era o seu papel, fazer tipo de opositor, e deixar a coisa fluir como sempre. Não se culpe. Agora você pode levar a filha do Lira a Paris, ganhou um bom dinheiro...”

“E o marido dela? Levo junto?”

“Você não pensa nele quando fica com ela. Ela é safa, inventa uma desculpa, viaja com você. Não é isso o que ela queria? E mais, você precisa conhecer Paris, ver que o mundo não é só esta cloaca. Vá ser feliz, mon chèr, agora ela vai ser só sua.”

“Difícil viajar à Europa lembrando desta favela aqui ao lado do lixão. Não fiz nada por essa gente nos meus seguidos mandatos. Se der sorte, irei já para o quinto consecutivo, e nada fiz.”

“Preste atenção: esta é a cidade com o maior orçamento da região. As indústrias recolhem muito imposto. Só que metade da receita é para pagar funcionalismo. Se você está com crise de consciência, não devia receber o seu. Deixe de frescura. Eu vi como conversou com o juiz para liberar o dinheiro dos funcionários da terceirizada que faz as vezes do funcionalismo e estica o gasto público. Foi um golpe de mestre, liberar com uma liminar o dinheiro que levaria anos a sair na Justiça. Por isso, por esse tipo de coisa, falta tudo a essa gente a que você se refere. Assim não há orçamento que dê, querido...”

“Puta que pariu, Carlão, a que ponto um homem chega por causa de uma mulher! Sinto que estou apodrecendo. Talvez por isso o bichinho aqui em cima da árvore. Ou então um de nós vai morrer...”

“Se for eu o morto você vai assistir à primeira pompa fúnebre da confraria. É uma cerimônia muito bonita.”

“Ainda estou chocado com a iniciação. Não sei o que possa ser mais impressionante, nem quero ver sua pompa fúnebre. Ainda mais porque seria presidida pelo Lira, não é?”

“No momento, sim. Mas não pense nisso, o urubu só está aqui por causa do cheiro das iscas. Xô!”

A ave partiu, vagarosa, a contragosto, lançou-se desajeitada a outro arbusto.
 
*

Agda, a filha do Lira, Theófilo amou desde logo. Quando a conheceu, no supermercado, encantou-se. Sem falar, só olhares trocaram, descobriu onde morava, mandou-lhe anônimas flores. Recebido o bouquet,  espreitando, telefonou da tocaia, para colher a reação imediata. Ela agradeceu, conversaram. Foi buscá-la na faculdade – ia ser assistente social – levou para casa pela primeira vez, amou. Quando ela falava,  amou. Quando ela casou, com outro, continuou amando, a despeito de não aceitar a justificativa política do casamento, nem o oportunismo despudorado que viu permear a alma da amada. Filha do Lira. Ficaram amantes até muito depois. Neste depois, já era amigo de Carlos Melo, media forças com o Lira, almejava Paris, andava nos meandros da política municipal, já pescava e via urubus.

Ficou com Agda nos olhos na noite da faculdade. Encantou-se, foi levá-la em casa. Na manhã seguinte, ainda com a doce lembrança, passou à frente de sua casa. Reparou no telhado o abutre branco, da cabeça colorida. Pensou se não seria um urubu albino, coisa inusitada. Mas, fosse albino, não teria cores na cabeça. Não sabia, naquele tempo, o que era um Urubu-Rei. Pensava que todos fossem negros. De toda sorte, aquele era um urubu, o aspecto solene e triste o denunciava.

“Fui a Paris pela primeira vez com quinze anos, papai me levou, presente de aniversário. Quero ir lá contigo um dia.”

“Quando a gente se casar, na lua de mel.”

“Preciso falar disso... Meu pai determinou que eu case com o filho de um aliado. Do prefeito...”

A notícia, dada com naturalidade escandalosa aos olhos de Theófilo, o desancou. Não ficou só no tiro à queima roupa - pouco tempo levou a que ela de fato casasse, e até Theófilo aceitar a situação, conformação que se deu mais por falta da amada que pela de princípios, custou um tanto mais. Voltaram a se ver uns três meses após o casamento forjado, ela garantindo que o amava, mas que a vida era assim. Para cúmulo de desespero, passou a lua de mel com o filho do prefeito em Paris mesmo, e sustentou bravamente ter pensado em Theófilo todo o tempo.

Agda era pragmática. Foi ela quem deu a ideia a Theófilo, ainda na faculdade, militante político, de se candidatar a vereador. Sempre repudiou, julgava que a via política era inadequada, que o ambiente corrompido impossibilitava qualquer ação a uma alma digna. Depois que a amada casou com o filho do prefeito, por despeito, achou de se candidatar – e foi eleito, bandeira boa, popular, esperança do povo. Agda cumprimentou-o no dia da diplomação:

“Podia ter sido tudo diferente, se me ouvisse antes. Hoje estaríamos casados.”

“Agora já pode se divorciar e ser só minha...” - Theófilo estava feliz e esperançoso.


Logo após ela, o marido o cumprimentou, e o sogro, e toda a comunidade política. Estava lá, era um deles agora.

Dias depois tinha Agda de novo nos braços, na cama de um motel. Despira o corpo moreno do vestido branco, pedia-lhe que usasse ornamentos coloridos na cintura, uma índia afrancesada. Ela ria, prometia que ia vestir penas coloridas de araras e tucanos, pássaros de vida.

“Largue dele e fique comigo...”

“Se você não fosse tão imaturo, estaríamos juntos. Espero que um dia chegue ao ponto do meu paladar. Vestirei penas coloridas para você, serei sua rainha, e nos amaremos para sempre...”

Ainda que eleito e empossado, não logrou ver a amada livre. Ela mantinha o casamento, sempre à desculpa de alguma conveniência.

*

Pouco à frente da casa onde já então morava seu futuro amigo e padrinho, Carlos Melo, um mendigo chorava a morte de um de seus cachorros. O bicho jazia ao lado da carroça de sucata, em meio a uma roda de urubus, parados à volta do cadáver. Esperavam alguém, ou algum comando.

Foi ali que Theófilo viu, pela primeira vez, a abertura ritualística do ágape dos abutres: a estranha ave branca, que parecia ali morar, desceu do telhado de Agda e pousou, asas abertas, no centro da roda, bem sobre o cão morto. Com o bico, que ali Theófilo descobriu duro e cortante, devorou os dois olhos, ante o olhar parado e os modos reverenciais dos outros. Num acesso de repugnância, afastou o olhar da cena macabra, e sequer associou a algum mau-agouro o fato do estranho pássaro morar no telhado da amada. Circulou com o carro, tomou café numa padaria próxima e, quando voltou para tentar um encontro casual na porta de Agda, o que viu foi o auge do repasto, a tertúlia, quando o branco Rei, saciado, só olhava o repartir das carnes mortas entre os abutres menores. Ossos já se viam, em pouco tempo estaria a carniça consumida.
 
*

Outro que contou coisas interessantes sobre urubu foi Francinaldo. Era o porteiro do prédio ao final da rua em que Theófilo fora morar, num sobrado isolado, quando melhorou de vida, à custa da política municipal, e tratou, a exemplo dos demais colegas políticos, de mudar pra cidade vizinha, que tinha praia e não tinha pobreza – nem urubus. Podia ter ido a Paris, mas juntou dinheiro e comprou a casa grande, onde foi viver só, escondido. Deixou apodrecer a viagem, não a sorveu enquanto fresca. Não queria ir só. Não casara. Nem Agda, tampouco, se separara do marido. Theófilo vivia no sobrado, trancado, oculto por heras, xaxins e trepadeiras, uma vida discreta, junto a seus cães, animais que adorava. Quando mudou, o último terreno, naquela rua sem saída onde só havia casas, foi vendido a uma construtora, que erigiu o prédio, bem ao lado da sua. Embora odiasse o povo do prédio, invasores do pequeno cul-de-sac onde se preservava, gostava do porteiro. Era um sujeito simples, mas sábio.

Contou-lhe, pois, Francinaldo: o urubu que, já o sabemos, tem filhos a cada cinco séculos, produz no ninho um ou dois filhotes, pintainhos que nascem inteiramente brancos, imaculados. Diz-se serem das criaturas mais puras de toda a Natureza, bichos limpos, de uma penugem alva, macia, angelical. Traziam nos olhos a nostalgia da podridão por vir, mas ainda assim eram olhos meigos, de uma pureza ímpar. Tais avezinhas são reclusas no ninho, que é construído, como se sabe, nos penhascos rochosos ou nos ocos das árvores mais altas do mundo. O mundo, este eles não o vêm então, e até aos três meses de vida. Só depois é que os pais os levam aos primeiros voos. Neste ponto, já ostentam a plumagem negra e a cabeça pelada que os caracteriza. Nunca poderão ter penas no rosto, para não agregarem podridão aos olhos e bico. Como os senhores vereadores, sempre bem escanhoados e de preto, para que não se contaminem. Magos negros. Se evoluírem, dominarem o shin, se conseguirem pregar a rosa na cruz, ficam com o coração imune, tornam-se reis. Podem, então, diplomatas, vestir branco, como quando eram puros. Poucos conseguem.
 
Alimentam-se, os urubuzinhos, incapazes de mastigar, do vômito que os pais regorgitam em seus bicos abertos ao céu. Seja, portanto, considerado que tais bestas, a despeito de tão delicadas, tragam o que há de mais podre, isto depois que é digerido e vomitado pelo estômago mais ácido do reino animal. Por se alimentarem de tal qualidade de escória, mudam-se de coelhinhos de pelúcia em abutres de verdade aos três meses. Quanto ensinamento proporciona com isso a Mãe Natureza! Somos o que comemos: as mesmas larvas de abelha viram operárias ou rainhas a partir do alimento.
 
O que de mais brutal colheu Theófilo da preleção de Francinaldo, um dos homens mais sábios que conhecera, foi o seguinte: o pequeno urubu, ainda no estágio desta angelical primeira infância, não pode ter contato com o mundo extraninho. Se vier a ter, não morre, mas sofre e fica decepcionado, qual o Gautama-Buda, quando saiu do palácio paterno e viu a miséria pela primeira vez. Agora, o que a avezinha não pode mesmo ver, é um ser humano. Se vir, a reação é imediata: vomita.

“C’est incroiable!”
 
*

Na cabeça do caixão, ao Oriente, Lira, todo de branco e ornado de fitas coloridas. A cada um de seus lados um irmão, vestido de preto – ao Norte, Heitor, ao Sul, André. Vários outros, todos vestidos de preto, iam formando a roda em volta do esquife, que se fechava em Theófilo, no extremo ocidente, aos pés do morto. Lira falou algo ao ouvido do da direita e também do que estava à sua esquerda. Estes foram passando a palavra ao ouvido do irmão próximo. Por fim, cada um dos que ladeava Theófilo falou-lhe ao ouvido – mas não era a mesma palavra. Lira o chamou à frente e pediu a senha.

“A palavra se perdeu, Venerável...”

“Faltou algum irmão, para que a corrente se quebrasse?”

“Sim, é o nosso irmão Carlos Melo. Aonde ele está agora?”

“Está na treva, de onde não se o pode resgatar...”

Assim foi a pompa fúnebre do Carlos Melo, que Theófilo deplorou assistir.

*

Havia perdido, depois dos princípios, o amigo que o consolou, pondo um fumo de poético no seu processo de apodrecer. Julgava não mais ter amigos. Não tinha mais mestre. Não queria tomar aprendizes. Não tivera filhos. Nem casara com a mulher amada. Vivia só, encastelado, uma casa triste e escondida. Paris, sequer fora. Deixou o prato estragar sem provar. Parecia que esperou mesmo estragar. De comer coisas podres, o alheio surrupiado e acumulado, tornou-se o que era. Vinha neste processo depressivo quando soube, pelo Heitor, que Agda se havia separado. O nobre vereador o convocava para uma cerveja, junto com sua bela assessora, Maria Cláudia, amiga e confidente de Agda. No bar, enquanto fingiu ir ao banheiro, Heitor deixou que a assessora contasse a Theófilo o segredo.

“Agda pediu que você deixe hoje o portão de sua casa aberto, e prenda os cachorros, que ela vai lá de madrugada. Antes ela liga, mas pediu que a espere dentro de casa, não lhe vá abrir a porta. Quer entrar pela frente, como a dona da casa. Vai viver pra você...”

“Vocês mulheres não perdem o romantismo. Mas perdem, em absoluto, a noção do tempo. Não é mais tempo pra essas coisas. Estamos velhos para o amor, estragados demais para ser mais que adúlteros. Filhos não mais, não mais Paris ou lua de mel. Perdi minha penugem branca, minha pureza, já vi o mundo, já vi os homens, não tenho mais nem nojo deles. Minhas penas ficaram pretas. Peguei gosto pelo podre...”
 
“Foi você quem deixou o tempo passar, Theo. Se fizesse como ela queria desde o começo... Mas não, ficou com seus radicalismos. Pra depois acabar deste jeito. Creia numa coisa que vou falar, e olha que eu conheço a Agda. Ela gosta mais de você agora,  carne maturada, apurou o gosto, deixou daquelas frescuras, daqueles sonhos de menino. Hoje você é um homem. Um homem para ela. Espere por ela esta noite. Vamos mudar de assunto, que o Heitor está vindo...”
 
*
 
Às três horas da manhã Agda telefona. Falam-se. Três e quarenta está ela à porta, na qual ele já resta colado quando soa a aldrava. O portão, como combinado, ficara aberto, os cães presos. Veio de índia, como ele gostava. Cobre-lhe o corpo moreno um vestido branco, imaculado. Na cabeça, como um cocar, ornamentos onde sobressaem um amarelo cromo e um vermelho francês. Está linda. Os olhos, aureola-os um arco-íris, das cores dos ornamentos do cabelo. Uma rainha. O Urubu-Rei em pessoa.

Voou do alto de seus dois mil metros, espreitava, enquanto Theófilo apodrecia até o ponto de seu paladar. Ave de rapina, agora ela entra, sem cerimônia, e sem dizer palavra envolve num beijo asfixiante, que ele retribui prazeiroso, corpo sem vontade própria, só a de ser devorado, deseja o desejo dela.

Durante o longo beijo vão-se despindo, ele serve, presta-se ao repasto da harpia. Ela baixa a boca, a tão adorada e suave boca, até a altura da pelve do amado, inicia por succionar a virilha. A boca tão doce e plasmada se torna no curvo e cortante bico do Urubu-Rei, bico-lâmina, invasivo, lembra o catéter que invadiu o corpo de Carlos Melo, Heitor falando “entrou pelo cu”, não era, mas era por baixo, invasivo, ela corta, arregaça e põe à mostra as vísceras, já temperadas ao ponto de podridão que seu paladar exige, vai indo devagar, tragando tudo, até que por fim devora-lhe o coração enegrecido.
 
FIM


2 comentários:

  1. Uma bela peça que discorre sobre a profanidade do mundo e o hábito do ser humano em conviver com a putrefação dos bons valores, notadamente dos políticos e seus asseclas.
    Uma bateria incessante ao autor.

    Diego Ruivo

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  2. Theo, Agda e Lira, triunvirato. Três faces de um mesmo e poderoso Urubu Rei. Grande pena!

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