terça-feira, 1 de julho de 2008



O Valor da razão



A expressão do olhar é de alguém que contempla a memória de um modo sereno, introspecção a esquadrinhar texturas e mistérios interiores. Nenhuma luz ou cor desviaria tal absorção de pensamento, extravagante olhar encravado no abismo, extasiado pelo desvario da alma. Quem poderia imaginar... Foi um quase surto o que se passou, a luz mal decifrava o assoalho de madeira corrida, abria uma lacuna na escuridão do quarto. Palavra nenhuma. A cortina enfeita e resguarda, uma fenda quase virtual não fosse o vazamento fino e iluminador. O de fora estupra como se percebesse os cheiros de uma sensualidade muda, inocente e passiva. Uma brisa tímida, esbatida, venta sutilmente as intenções da manhã, traz também suas vozes secas e frias, ruídos dispersos: Retida em casa, D. Ana, / Qual num cárcere, vivia; / E aí, cerrada a ventana, / Da rua ninguém a via. Ainda se lembra... Pouco sabia da vida ao ler o poema de Raimundo Correia, das algemas e das pocilgas existentes nos porões da hipocrisia. A cortina é porta, hímen, virga-férrea, é do interior a intuição de que respirar é transitório. Efêmeros os dias, as horas, o tempo. Mergulhar na memória é como fazê-lo em um rio, as águas nunca são as mesmas, nada se sabe das nascentes ou cabeceiras. Tudo é fluxo, fluência, enchentes, seca... Substância. Submersa nessa atmosférica escuridade, os olhos repassam os passos, descobrem o quão obscuro e marmóreo tem sido o trajeto, a luz mais ocultou que ilustrou. Não há marcas como as dos pés descalços no pó assentado no piso. A memória é feita de areia e ventanias; imagens nômades. Ao não ofender como o Sol do deserto que abrasa, a luz é sutiliza que engana; como tudo que simula. Pensa-se ver tudo com ela, mas ela cega, penetra os olhos como o falo o sexo, provoca aberturas e gozos, orgasmos em série, a luz rouba os fantasmas e os deuses da meninice e que nos visitam, sonâmbulos, quando as pálpebras se encontram ou a fantasia se achega. São da escuridão as texturas e os mistérios que nos rondam; da vida, a luz que deixa desfilar minúsculas sutilezas aéreas; do dia, o calor abrasante do Sol que chega forte nesse verão... E do desejo, um renascer. Como se a volta fosse um acender e apagar de lâmpadas, um fechar e abrir de janelas. Engano! Rompida a fina membrana que separa o adulto da criança, não há retorno, só saudade, e a ilusão que há matéria a rever. Arremedos, todos ao redor. Ridículas imitações. Como sair das funduras em que esse olhar mergulhou, esse oceano em branco-e-preto com suas conchas e pérolas esquecidas, diante de homens tomados de poder que, em noturno silêncio, brancos nos trajes, injetam drogas, dão choques elétricos, deliram uma cura para os diferentes? E o que conseguiram? Olhos que mudam do azul ao verde como se das profundezas da alma viesse uma claridade espectral e delirante, da apresentação de uma película cinematográfica a contrastar com um corpo amorfo no canto da cela...
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II. O surto e a internação: Voltar pra dentro da mãe


Não, não saia daí. Deixem eu quietinha aqui. Deixem! Deixem! Vão! Vão! Vão daqui! Vocês são muito chatos. É! Sim! Sim! Vocês adoram celas, não é? Eu também. Mas seria melhor se não estivessem aqui. Principalmente você que fala muito. Não me conhece não! Vai! Vai! Vocês ouviram o que ele disse: Depois que as flores murcharam, quero distância do mundo, peço a Deus um quarto com banheiro e chuveiro... Gosta de tudo certinho. É verdade! É verdade! O quê? Tudo que disse. Falou como eu penso. Não certinho assim. E dizem. Todos dizem alguma coisa. Acho que pensam ter o direito. Deixe! Deixe! Deixe que falem. Eu? Não suporto mais. Quero ficar aqui bem quietinha. Leva essa luz pra lá, esse barulho no corredor. Sou feliz assim. Felicidade é amor. Meu filho sempre dizia amor pra mim. Feliz feliz feliz... Acho que sim. Levaram ele cedo de mim. Aqui ninguém fica junto. Me achava gorda. Queria pagar uma lipo. Falei Nem vendendo o carro. Coitadinho! Você pode ficar. Os outros não! Saiam! Fico melhor assim, encolhidinha. Planos! Muitos. Foram-se. Como areia. Um dia soprei na palma da mão e eles fugiram de mim. Bem que tentei... O quê? Recolher grão a grão. É! Tinha eles na palma da mão. Devia por num cofre. Nisso vocês estão certos. Havia muito medo. E se não conseguisse saber o segredo depois? O sopro leva tudo. Já não leva mais as palavras. Tudo que dizia usavam, e usam, contra mim. Sopro pra dentro, mas sempre vem pensamento, não pára, igual areia no deserto. Isso mesmo! Um montinho aqui e outro acolá. Sopro, eles mudam de lugar. Vão! Vão! Vão daqui! Se me irritar vem o sujeito de branco. Pensa que é puro. Vejo nos olhos dele. Vejo nos olhos dele. Não, não me obrigue a dizer. Não gosto dele. É só! É só! Isso mesmo! Atrás do branco só tem sujeira. Verdade! Não queria dizer, mas disse. Não! Não gosto... Do jeito que me olha. Eu pelada na frente deles. Divertem-se ligando aqueles fios em mim. Eu sei de meus fios soltos. Mas tenho vergonha do corpo. Engordei muito. A merda dos remédios que me dão. Desaforo... Me urino toda. É pra ele não usar o pinto em mim. Já vi molhado. Não gosto! Não gosto! Do jeito que ele passa a mão na gente. Leva a luz com vocês. Por favor! Tem bicho nela. Muitos bichos. Rezo! Rezo! Rezo! Assim não chegam aqui. Deus me ajuda. Sempre sempre sempre. Fiz umas artes. Um dia passei no meio daqueles rapazes... Não! Não! Não falo. Não quero! E pronto! Agora vão! Vão daqui! Deixem eu quietinha. Deixem! Deixem! Ele já me perdoou. Meu filho! Meu filho também. É um homem. É feliz. Felicidade é amor. Melhor saírem. O tal de branco não pode saber. Doidinho por um choque. Medo! Medo! Sinto muito, muito mesmo. Medo! Brinca com os fios. É! Aquele olho encurvado e torto brilha quando mexe com os fiozinhos. Então? Aperto bem as coxas. Isso mesmo! Aperto bem as coxas. Assim! Viu? Luz não entra. Nada! Nada! Não entra nada. Ele tem medo de mim. Também! É verdade! Assim não incomoda. Não gosto. Não esqueçam. Levem a luz. Preciso costurar a cortina. Voltar pra dentro da mãe. Deixem ele falar. Eu já falei bonito assim. Falta? Sinto! De passarinhos. Vinham no varal. Centenas de andorinhas. E eu chamando elas. Da janela. Uma tonta! Uma tonta! Isso sim! É verdade! Como podiam conversar comigo? Mas feliz. Felicidade é amor. Agora vão! Se não... Amanhã tem mais. Vão! Vão! Vão! Aqui não tem passarinho. Nem sombra. Perdi a minha quando me jogaram aqui. Agora? É! Tem um prontuário. Não sei que tanto tem escrito lá. Eu não escrevi nada. Não disse. Também não! Acho que foi o marido. Foi fugindo, fugindo... De mim. Esperava um mês pra amor. Eu queria todo dia. Que vergonha! Dizer isso pra vocês. Não! Não falem! É segredo nosso. Segredo. Ouviram? Olham muito sério praquilo tudo que está escrito. Olham pra pasta, olham pra mim, misturam uns comprimidos em um copinho e me dão. Esperam engolir. São vivos! É! Se acham. Se pudesse tirar vocês daqui! Vão! Vão! Um cantinho só pra mim. Não sabem nada. Não! Falar de vocês! Nunca! Agora vão! Preciso dormir. Quando durmo sou feliz. É! Verdade! E felicidade é amor. Eu amo. Muito! Muito! Muito! Verdade! É urgente! Preciso costurar meus pensamentos. Ser feliz é isso... Costurar pensamentos e AMAR. Estou bem assim.
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III. A cura e o retorno: Felicidade é amor


Eu não queria. Todos se foram. Estou sozinha sentada nesse banco em frente do manicômio. Precisavam me liberar. Agora você pode viver lá fora, disse-me o doutor. De que lá fora estaria falando? Pensa me devolver a saúde, a liberdade, quando o que fez foi me enclausurar junto às vozes que, espectrais, convivem comigo, escrevem meu destino. Acostumei-me com o olhar que as pessoas me dirigem. Não vejo felicidade no rosto deles... Percebem logo que somos diferentes. Protegem-se. Hoje sei, da própria loucura.
Meu filho vem me buscar. Sempre ele. O marido desistiu. Os vizinhos têm medo de mim. Dos surtos. É o que dizem, que são surtos, cada vez mais longos. Não ligo para nada do que dizem. Quando no mundo, atuo a maior parte do dia a Ana do poema que você já conhece: Retida em casa, D. Ana, / Qual num cárcere, vivia; / E aí, cerrada a ventana, / Da rua ninguém a via. Aberta, apenas a janela que dá para o fundo da casa, é de onde converso com as andorinhas que pousam no varal e contemplo as montanhas que se assomam na distância. Os medicamentos prescritos devolvem-me apenas a ordem das palavras, nada mais... Tudo ao redor se passa em branco-e-preto.
Lá está... Um homem! Corre em minha direção. Sorri e me abraça forte. Permanecemos algum tempo abraçados. Afasto seu rosto de meu ombro e seguro-o com as duas mãos. Já tem pêlos no rosto. Feliz? Felicidade é amor, me responde. Não seguro a lágrima que ele limpa com um lenço. Saímos de mãos dadas, como dois namorados, ele cheio de novidades, e eu, você sabe, contemplativa e sem sombra, um mundo que nada tem a ver com meus cheiros, minhas texturas e meus mistérios, além de meu filho e um último pensamento: Depois que as flores murcharam, quero distância do mundo, peço a Deus um quarto com banheiro e chuveiro. É isso que chamam de cura...


carlos pessoa rosa é escritor e editor do meio-tom.

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