Por Marcelo Ariel
Continuando este meu mapeamento, desta vez seleciono poemas de Marceli Andresa Becker (foto), poeta gaúcha, autora de poemas densos que dialogam com a Terra e a Natureza dentro do corpo,através de uma sensorialidade que duplica selvagemente o ' eu lírico em corpo e Corpo, corpo exteriorizado no pensamento que se dissolve no mundo e Corpo interiorizado no pensamento que se auto-investiga, como se procurasse o que está atrás do pensamento do próprio corpo, que se pensa com a mesma autonomia simples e ininteligível dos bichos e das plantas, uma poesia que desconfia da linguagem e se monta como um filme trágico dentro dos orgãos, do sangue e dos ossos, imagens que aparecem com força em alguns poemas. Marceli mais do que evocar a 'voz feminina', materializa em alguns poemas com sutileza, um profundo conflito entre um furor abstrato e a irônica visão de uma dicotomia entre a palavra e a vida. Abaixo alguns poemas dela, que selecionei de seu blog e de sites como Portal Cronópios e Revista Zunái.
QUANDO O CORPO TODO
1
quando o corpo todo,
*
túmulo vivo
de ecos, de caos,
*
sai pelo umbigo: camaleoa, a língua é corda
de um sino imenso dentro do peito.
*
como se os ossos voltassem à infância
para crescer até abrir outra vez
*
os tecidos. se já não há linhas nas palmas
das mãos, meu amor,
*
se já não temos costuras,
*
a linguagem vaza por todos os dedos: deixa que escorra
no meio das bocas, dos túneis,
*
deixa que sonhe um enxerto pra morte.
2
dá-me a noite que falece, a tua escura
escavação, e te ofereço
*
o meu Narciso ainda
de pálpebras fechadas, ainda virgem,
*
inviolado pelo espelho.
*
(mas se cantar
é cantar contra ouvido e pele, tempo de fibras,
*
mas se beleza é tu contra carne,
então cantar, cantar, pra te fazer
*
pedaços.)
3
porque te antifalar é qualquer coisa
antes das grutas.
*
há uma presa que em mim grita a tua entrega
de Adão nu, ferido,
*
feito da minha fome de costelas.
4
vê, é só perdão o que hoje em ti me pede o mundo.
é só um varal a céu aberto,
*
roupas voam
contra o vento, se confessam,
*
o que tens no coração.
HAVERIA DE DRENAR
A ESCURIDÃO DAS TUAS OLHEIRAS
A ESCURIDÃO DAS TUAS OLHEIRAS
haveria de drenar a escuridão das tuas olheiras
para a ideia de uma ave.
para a ideia de uma ave.
que artéria deste voo romperia
se cantasses até o fim? em que praia?
se cantasses até o fim? em que praia?
ouve, amor,
haveria de te erguer
pelos cabelos de algum poço de petróleo
e atirar a plataforma do teu rosto para o céu.
pelos cabelos de algum poço de petróleo
e atirar a plataforma do teu rosto para o céu.
TRAZES O BARRO ENTRE AS MÃOS
SE TE APROXIMAS ASSIM
SE TE APROXIMAS ASSIM
1
trazes o barro entre as mãos se te aproximas assim.
trazes a alga.
trazes a alga.
2
vem de onde a urina espessa que acumulam
as tuas pálpebras?
as tuas pálpebras?
terçóis?
3
há quem diga que é de terços enrolados
nos teus rins de César, luzes
nos teus rins de César, luzes
de natais passados,
ou dos hinos que uma escola de beatas, toda noite,
canta para os teus testículos.
canta para os teus testículos.
4
não importa: hoje corres com fiapos de uma alga
pelos dedos, pelos cascos,
pelos dedos, pelos cascos,
5
e relinchas como se fosse no mar a tua boca.
DO LADO DE FORA DE MIM
fosse a minha boca uma bica,
gole que a sílaba inverte,
bulímico,
gole que a sílaba inverte,
bulímico,
não uma outra buceta,
que sorve, que suga
a sua própria saída,
eu te diria, acredita, do lado de fora de mim.
que sorve, que suga
a sua própria saída,
eu te diria, acredita, do lado de fora de mim.
SEM TÍTULO
“Quoth the Raven, `Nevermore`”
Edgar Allan Poe (The raven)
que corpo têm os mortos? que pés?
Edgar Allan Poe (The raven)
que corpo têm os mortos? que pés?
batem suas cabeças de pingente em queda
– ouve o grito que rebenta
a gargantilha das palavras na garganta –
contra o quê?
– ouve o grito que rebenta
a gargantilha das palavras na garganta –
contra o quê?
há duas moscas-varejeiras que falecem dos seus olhos:
são estrelas que outro céu chama cadentes.
anda, faz nenhum pedido.
são estrelas que outro céu chama cadentes.
anda, faz nenhum pedido.
SEM TÍTULO
duas e vinte da manhã.
tento dormir, em vão,
tento dormir, em vão,
porque há torneiras que aguardo que feches
e maçanetas que tens de torcer.
faltem-me lágrima e muco, será,
para engraxar as roldanas que te levantam
dos meus pulmões?
(como se em algum lugar ainda houvesse saída.)
e maçanetas que tens de torcer.
faltem-me lágrima e muco, será,
para engraxar as roldanas que te levantam
dos meus pulmões?
(como se em algum lugar ainda houvesse saída.)
será que aguentam as tranças,
tendões de mel e placenta,
se eu atirar a tua escrita do ombro até os dedos?
(como se ainda eu pudesse mover algum pulso.)
tendões de mel e placenta,
se eu atirar a tua escrita do ombro até os dedos?
(como se ainda eu pudesse mover algum pulso.)
é que tu pesas por vezes
todas as horas de ti.
tento deitar, meu amor,
uma vez mais,
porque é possível que o barro
com que moldaste berrantes no meu coração
todas as horas de ti.
tento deitar, meu amor,
uma vez mais,
porque é possível que o barro
com que moldaste berrantes no meu coração
(um par de átrios e de ventrículos)
se desintegre no sonho.
se desintegre no sonho.
SEI DE ÍNGUAS QUE REBENTAM
sei de ínguas que rebentam
como um gêiser na garganta.
(soa o alarme das amígdalas!)
como esqueces que há febre na tua fala
e que tu tens de abrir a boca enquanto é tempo?
cospe em tua musa, em tua harpa,
ateia fogo em teu outro inflamável.
sei de ínguas que rebentam
como um gêiser na garganta.
(soa o alarme das amígdalas!)
como esqueces que há febre na tua fala
e que tu tens de abrir a boca enquanto é tempo?
cospe em tua musa, em tua harpa,
ateia fogo em teu outro inflamável.
A MULHER MEXE NA TERRA
1
a mulher mexe na terra.
*
lâmina-lua
corta o barbante que lhe prende as mãos.
*
*
lâmina-lua
corta o barbante que lhe prende as mãos.
*
dez pás ao todo, unhas
compridas,
*
consegue ouvir? o sangue rompe
a cisterna dos dedos
*
na campainha.
2
todas as portas lá fora
dão para ela.
*
durante o resto da vida
perguntará a si mesma: quem fixou
*
deste jeito as três dobradiças?
*
(boca, buceta e cu).
3
um morto à espera: todo
olho é mágico.
*
chamam-lhe ave que virou pra dentro
os holofotes imensos do rosto.
4
em breve ela atenderá.
compridas,
*
consegue ouvir? o sangue rompe
a cisterna dos dedos
*
na campainha.
2
todas as portas lá fora
dão para ela.
*
durante o resto da vida
perguntará a si mesma: quem fixou
*
deste jeito as três dobradiças?
*
(boca, buceta e cu).
3
um morto à espera: todo
olho é mágico.
*
chamam-lhe ave que virou pra dentro
os holofotes imensos do rosto.
4
em breve ela atenderá.
Maravilhosa!
ResponderExcluirBela proposta deste site. Encantada!
Um abraço!
mar é uma grata surpresa da poesia contemporânea.
ResponderExcluirdaquelas que produzem um silêncio incômodo dentro de nós...
A poesia da mar é indizível, maravilhosa!
ResponderExcluirEstrela de primeira grandeza.
ResponderExcluirRetomando o fôlego! Parabéns!!
ResponderExcluirRetomando o Fôlego! Parabéns!
ResponderExcluirFiqeui perplexa com a qualidade da poesia desta moça gaúcha. Obrigada aos editores do blog pelo trabalho de encontrá-la para nós.
ResponderExcluirMar é excelente. Tem mesmo uma poesia de chamar a atenção. Gosto muito.
ResponderExcluir