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Banksy |
Por Jean Pierre Chauvin¹
A julgar pelo ritmo das bombas autorizadas em nome de Deus (2) – entidade que, na opinião do Xerife do Planeta (3) só abençoa um pedaço da América do Norte –, duvido que esta carta sobre no tempo e ultrapasse as fronteiras pseudoilimitadas da Internet.
De todo modo, externo algo em que sempre penso, quando na sala de aula. A escola e a universidade não se confundem com lojas, empresas, casas lotéricas, balcão de empregos, igrejas, templos religiosos ou agências bancárias.
Ora, desde a década de 1980 – quando a USP passou a ser concebida segundo o modelo gerencial/empresarial –, a ciência disputa lugar com o senso comum, a reflexão enfrenta o pensamento pré-moldado, a liberdade de cátedra resiste aos dogmas do neoliberalismo, a qualidade e o sentido da pesquisa contrariam a lógica produtivista.
Em Liberalismo Antigo e Moderno, José Guilherme Merquior chamou a atenção para o fato de que a palavra “liberal” acumula várias acepções, que mudaram ao longo dos tempos. Há diferenças enormes e evidentes entre Montesquieu, John Locke, Adam Smith e os gestores do Estado Mínimo, cínicos atuantes em nossos dias.
Afora a evolução do termo (“liberalismo”), há que se considerar que ele pode se referir à esfera política (“Defendo o liberalismo contra o absolutismo”), moral (“Meus pais são liberais”), econômica (“Defendo o liberalismo como alavanca do capitalismo moderno”) – assunto delicado, em tempos de uniformização de pensamento, modos e ações (4).
Enquanto a indústria da guerra preserva sua primazia no cenário econômico, castigando povos em nome da pretensa liberdade e democracia, o território braseiro em que habitamos age de modo rasteiro e hipócrita, fingindo defender patrões e empregados.
Por sinal, ainda que esses e outros assuntos não pudessem ser abordados em sala de aula, reitero o truísmo de que movimentos supostamente apartidários são justamente aqueles que mais adotam medidas violentas contra a liberdade de cátedra e expressão.
A sala de aula é (ou deveria ser) um território solidário, em que alunos e professores têm a possibilidade de questionar o pensamento acabado forjado pela “grande” mídia, a ideologia recompensatória do mercado e propor uma convivência alternativa ao negócio e ao utilitarismo.
Preconceitos e formas de alienação ao meio em que infravivemos têm, na sala de aula, um dos poucos redutos de efetiva resistência. Ela se dá por meio da leitura compartilhada (daí a importância de se assenhorear dos textos sugeridos pelo educador) – ingrediente fundamental para conduzir uma aula que se pretenda libertária.
Ouso pedir aos alunos que colaborem em tornar o ambiente em espaço de troca e solidariedade, sem esquecer o papel diferenciado de uns e outros. Vale lembrar que, na maioria dos casos, o professor é mais velho e tem maior conhecimento sobre determinados assuntos, o que demanda respeito por sua função social.
Além dos familiares, a escola e a universidade são, provavelmente, os últimos bastiões da leitura e do pensamento refletido (portanto, não automatizado), antes de o estudante aumentar os “exércitos de reserva” (5) que alimentam o mercado e engrossam o sonho de trabalhar para si mesmo como orgulhoso PJ – sigla que costuma ser confundida equivocadamente com “profissional liberal”…
Preservemos a curiosidade, a imaginação e a liberdade de pensar. Não há sentido em reproduzir lugares-comuns, descortesias e outras formas de violência na sala de aula, sob pena de não distinguirmos o que é ensinar, propor, mudar, dialogar.
Não se espera solidariedade em agências bancárias, balcões de emprego e agências de fomento. Não nos furtemos à manutenção e resistência pela palavra; ao hábito de nos referirmos aos antigos, medievais e modernos; ao livre pensar, que é inerente à sala de aula. Reduto de quem não se molda ao pré-estabelecido.
No fundo, é uma questão de decoro: cada ambiente que preserve a sua especificidade, comunhão e alçada. Aposto que argumentaríamos com maior competência que alguns meninos de paletó e falácia nacional-entreguista.
(Piratininga, 7.IV.2017 d.C.)
[1] Professor e Pesquisador de Cultura
luso-brasileira na USP.
[2] Alusão ao discurso de Donald Trump, a
justificar o bombardeiro da Síria, nesta data.
[3] Expressão cunhada por Eduardo Galeano (vide
O Teatro do Bem e do Mal).
[4] A esse respeito, é essencial a leitura de O
homem unidimensional, de Herbert Marcuse.
[5] Expressão cunhada por Karl Marx (vide o
capítulo XXIII de O Capital).
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