quarta-feira, 20 de agosto de 2014



Aqueles que, de olhos fixos,
Atravessaram para o reino da morte
Se lembram de nós - se acaso lembrarem
Não como almas violentas, perdidas
Mas apenas como os homens ocos
Os homens empalhados.
T.S. Eliot, "Os homens ocos", epígrafe de Nicolau Sevcenko a A Revolta da Vacina

Apenas um semestre em 2005 e ainda frequento o curso História da Cultura e Cultura Popular: Interveniências Temáticas, Analíticas e Conceituais, de Nicolau Sevcenko. Ele dizia que preferia estar lendo, em casa, ou pesquisando, mas tinha um compromisso com a sala de aula formado pelo enfrentamento da dislexia (aprendeu português já no meio da infância) e pela coragem contra a timidez. Nunca fui íntimo, mas lembro com carinho a generosidade com que lidava com as pesquisas dos iniciantes, sugerindo relações entre elas e se empolgando com assuntos ainda obscuros ou não completamente elaborados, sempre apontando potencialidades. Uma vez ele me fez uma pergunta durante um seminário. Defendi a dissertação em 2008 e ainda não a respondi.

Não precisava complemento, sua aula era isso: aula. Inesquecível a tarde em que traçou todo o percurso da lenda do pavão misterioso desde a antiguidade nas estepes asiáticas até o sertão brasileiro de hoje. Não lembro se foram horas ou minutos. 


O trecho abaixo, da introdução à Literatura como missão, pessoalmente, foi uma lição para ler o romance Navios Iluminados, de Ranulpho Prata, e entender seus personagens que trabalham no porto de Santos. Além disso, o trecho é uma afirmação e uma defesa da pesquisa e da escrita da História que se utilizam de textos literários como fonte documental, não porque a ficção ilustre os fatos, mas devido a seu poder de reflexão e projeção das expectativas e formas de pensamento de uma sociedade. 
A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) A produção dessa Historiografia teria, por consequência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram marginais ao sucesso dos fatos. Foi sempre clara aos poetas a relação entre a dor e a arte. Esse é o caminho pelo qual a literatura se presta como um índice admirável, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da história social.
Na primeira frase da introdução a seu A Revolta da Vacina, Sevcenko afirma: "Nunca se contaram os mortos da Revolta da Vacina", que ocorreu na primeira década do século XX. À frente, acrescenta:
A matança coletiva dirige-se, via de regra, contra algum objeto unificado por algum padrão abstrato que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma etnia. Personificando nesse grupo assim circunscrito todo o mal e toda a ameaça à ordem das coisas, os executores se representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo. O preço a ser pago pela sua bravura é o peso de seu predomínio. A cor das bandeiras dos heróis é a mais variada, só o tom do sangue de suas vítimas permanece o mesmo ao longo da história. 
A Revolta da Vacina é republicado em 2010 com uma introdução em que Sevcenko o dedica às vítimas do incêndio em Vila Socó, outra matança sem contagem que havia ocorrido em fevereiro de 1984, ano da publicação da primeira edição:

Por fim, gostaria de dedicar este pequeno trabalho à memória dos mártires involuntários da favela de Vila Socó, em Cubatão (SP) - que, sob a omissão dos poderes públicos, foi sendo encharcada de dejetos químicos inflamáveis provenientes de tanques industriais próximos, incendiou-se e foi consumida em instantes numa noite de fevereiro de 1984 -, para que não nos esqueçamos jamais deles e para que nos disponhamos a avaliar melhor o futuro, do qual eles foram tão cruelmente privados.

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