Ademir Demarchi
No
romance O
enteado
(1983), o escritor argentino Juan Jose Saer ficcionaliza a chegada
dos espanhóis em algum lugar incerto das terras sul-americanas e seu
contato com a tribo indígena dos colastinés.
O que pareceria se
anunciar como uma reinterpretação de um dos conhecidos relatos do
encontro dos europeus com os aborígenes acaba por tomar outros rumos
na escrita de Saer. Isso porque, mal o capitão do navio e seus
marinheiros iniciam uma conversa com os indígenas, são atacados por
eles, desfazendo a encantada imagem em nós fixada do que foi esse
contato. Apenas o narrador do romance escapa de morrer,
transformando-se no enteado, adotado pelos índios e que, por isso,
assiste seus companheiros mortos no combate serem levados pela tribo
para um banquete coletivo.
Tendo escapado do massacre, ele se
confronta com o que define como barbárie, tentando entender por que
os índios, antropófagos, comem os outros que combateram,
transformando-se, aos seus olhos, em bárbaros, muito diferentemente
dos nativos dóceis tão repetidamente lidos em relatos dos europeus
que descobriram a América hispânica ou o Brasil. Esse narrador,
ainda que baseado também num fato verídico de um grumete espanhol,
tem muito do Hans Staden alemão que foi adotado pelos índios
antropófagos brasileiros, escapando por pouco de ser devorado e
sobrevivendo para escrever um dos mais interessantes relatos de
convívio com a antropofagia.
O relato de Staden serviu para inspirar
muito do que se produziu sobre esse assunto no Brasil, especialmente
por Oswald de Andrade, que formulou toda uma valiosa teoria de
assimilação cultural do outro europeu para ser usada por nós a fim
de buscarmos a singularidade da nossa cultura através da devoração
simbólica do outro. Para o narrador do romance de Saer, que também
sobrevive e retorna à Europa para escrever seu relato, a necessidade
de devorar carne humana pelos colastinés, apesar da teia de
irrealidade que ele cria, é um caminho para alcançar o conhecimento
da realidade e melhor se inserir nela.
O enteado, porém, ressalta o
mal-estar que acomete os indígenas quando comem a carne humana, com
febres, vômitos e todo tipo de reação agônica que parece estar
mais nele que vê nisso um ato de barbárie que propriamente nos
antropófagos. Em sua busca de entendimento de como isso se
configura, ele descreve a comilança como um ritual coletivo,
preparado à base de uma bebida que dopa os sentidos dos índios
esvaziando toda capacidade de estranhamento para que possam comer o
outro humano que combateram e mataram.
Essa descrição, é claro,
tem muito do senso católico europeu, para o qual é impossível,
mesmo com droga, alcançar o conhecimento com naturalidade devorando
fisicamente o outro, uma vez que a Natureza é selvagem e precisa ser
catequizada. Por isso, sob o olhar desse narrador europeu que se
confronta com o estranho total que é o aborígene americano, essa
devoração somente é possível com muita droga, ingerida pelos
índios até alcançarem um grau de anestesiamento total do sentido
do que seja o real.
Esvaziado, assim, o significado da ritualização
da devoração do outro, resta apenas a droga como sinônimo de
barbárie, num julgamento e condenação do seu uso pelo europeu, que
chega até os nossos dias. A droga aceitável, assim, passa a ser
apenas aquela controlada pela instituição, quer religiosa, quer
governamental, sendo incorporada pelo capitalismo e todas as
instituições e saberes, como a medicina e psicologia, de tal forma
que sirva apenas não para abstrair-se da realidade, mas, antes, pelo
contrário, para alcançá-la como única forma possível de
conhecimento.
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
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