Por
Osvaldo Felix da Silva
Extrair
o diferente do mesmo é uma tarefa que demanda um senso agudo de observação, um
empenho de lucidez capaz de sondar aspectos do comportamento individual e
social e penetrar no âmago da dispersão moral de nossa época. Assim, os 21
contos de Amortalha, terceiro livro de Matheus Arcaro, podem ser lidos como
variações de um mesmo tema, vida e morte, numa concepção essencialmente
estética.
O
domínio dos instrumentos essenciais à construção da boa narrativa apresenta-se
apurado. A língua estilizada associada à estrutura narrativa causa um
“estranhamento”, pois apresenta um mundo igualmente estranho, como em Palavras
Mudas, em que o estilo seco e impessoal furta-se a explicações e substitui a
explicação pela ação, como se as personagens fossem seres sem alma num
paradoxal encontro solitário e sem comunicação.
Há
outros recursos estilísticos, sobretudo poéticos, aos quais o autor recorre
para sugerir uma tensão entre a consciência racional e os impulsos lúdicos da
existência, como em “Bete arrasta as sandálias como se precisasse desgrudar uma
verdade da calçada”, (Salvação), (“Dona Nenê caminha como se procurasse o
passado no piso de madeira:”, (Dona Nenê), “Metade da boca é uma flor às
avessas”(A flor) .
A
linguagem poética insufla o lúdico (Eros) no contexto da materialidade estéril
de um mundo racional e asséptico (Thanatos), conferindo amplitude ao binômio
vida e morte. A ironia presente em “Foucault Ficcionista” e “Fora do Ar”
aponta, para além da superfície óbvia do humor, nas camadas mais profundas, a
presença constante, embora com certo disfarce, da procura por um caminho entre
os extremos: de um lado a consciência intelectualizada que enxerga a morte no
horizonte da vida e por isso procura refúgio na alienação e, de outro, o jogo
lúdico que corre o perigo de aproximar-se do ridículo, mas risco necessário
para extrair poesia da realidade. Entre os dois pólos, figura a precária
condição humana que oscila entre risos e lágrimas, caminhando sempre pelas
estreitas vias da existência. Da certeza da morte e da brevidade dos dias brota
certo encanto que confere doçura e profundidade à vida.
A
linguagem poética e por vezes intensa do autor faz com que o cotidiano de Dona
Nenê ganhe sangue e nervos, e o banal converta-se em essencial, reconhecendo na
solidão de uma velha a marca da tragédia humana, traduzida em solidão e
abandono. Uma angústia intensa aparece nas páginas de quase todos os contos.
Seres desamparados, isolados na solidão, cuja vida assemelha-se a certos
quadros impressionistas, pontos miúdos, um pontilhismo que aviva pessoas
desintegradas, unidas por uma luz opaca que oculta o brilho da vida. Mas
ocultar não significa inexistir. A força da linguagem resgata as personagens da
anomia e da dispersão para lhes dar uma unidade na estrutura superior da arte.
A
evolução técnica de Matheus Arcaro de seu livro de estréia para o atual é
bastante evidente. A linguagem por vezes áspera da estréia está agora maleável
e mais cristalina. Graças a esta transparência o leitor pode observar da
superfície a profundidade por onde mergulha o autor.
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