Por Márcia Costa
Fotos: Evandro Rota
Caminhando ao lado da platéia, em direção ao palco, Gero
Camilo, ou melhor, Van Gogh, se aproxima do cenário montado no Sesc Campo Limpo (São Paulo).
Vem acompanhado de sua memorável cadeira, da sua maleta de pintura, do chapéu e
dos girassóis. “Todos os caminhos levam ao Sul”, brada o artista.
Estamos em 1888, em Arles, Sul da França, quando Van Gogh abre
as portas da Casa Amarela, espaço que sonhou para artistas como ele, Paul
Gaugin e Toulose Loutrec. “O mundo é o relento. Aqui será a casa dos Van Gogh. Não
estamos aqui por mérito, estamos aqui por necessidade”.
Ali, na casa-arte, Van Gogh travou diálogos e lutas com
Gaugin, com o universo, com ele mesmo. Mesmo assim, nunca cessou seu pincel. “Eu
amo pintar pessoas. Por que eu amo pessoas. Dialogo com quem pinto. Se a pessoa
não quer conversar, dialogo no silêncio”. No ato violento de arrancar a própria
orelha, consumou a agonia de viver. “É mais fácil morrer”, desabafou o artista
que em vida vendeu apenas um dos 700 quadros que produziu.
Em Arles, Van Gogh pintou a série “Os Girassóis”. Na Casa
Amarela, entre devaneios, reflexões e criações, o pintor nos lança desafios, interrogações
sobre a arte de viver e sobre viver de arte: “Vale a pena matar por um ideal”? “Um
quadro tem fim ou ele é arrancado da gente?” “O que seria da plateia se
fôssemos sérios”? “Não há coerência sem delírios”. “Tudo é feito para serenar
um dia”. Questionava, principalmente, a coerência e a racionalidade que tentam
apagar a vastidão do sexto sentido.
São poucas as falas do texto proferidas por Van Gogh. Para
pintar o artista no palco, Gero, que como Van Gogh, um dia pensou em ser padre,
passou um mês em Amsterdam, onde há um museu dedicado à obra do pintor. Também
visitou a pequena Zundert, onde ele nasceu. A pesquisa, mais do que ajudar o
artista a adentrar a alma de Van Gogh,
permitiu-lhe mesclar seu pensamento ao do pintor. “[Na peça] sou eu
voltando ao passado de Van Gogh e ele vindo para o futuro. Van Gogh é muito
mais do que a psicanálise tenta taxá-lo. Era um espírito revolucionário,
inquieto”, analisa.
De Van Gogh, Gero destaca a visão política, estética e
artística. “O pensamento ideológico, plástico e político, a postura dele me
interessam”. Para encená-lo, buscou causar vertigem no público para, assim, aproximar
as pessoas da sua pintura. “Embaralho a cabeça do público. Para isso, eu me
misturo a ele”.
No palco, pintura e teatro convergem. “Uso o contato e a
dança de improviso, que gera imagem, que gera cena. O desenho físico do
espetáculo é uma preocupação minha. Uso o corpo como um pincel. Pinto o palco
com meu corpo”.
A seguir, trechos do texto escrito pelo autor, publicado sob
o título A Casa Amarela (Editora Giostri):
Quantas vezes na vida se pode abrir uma porta...
Hoje eu posso. Ou
devo. Quer dizer, tenho em minha mão uma chave. E é desta porta, bem sei. Podia
abrir outra porta. E é capaz de abrir outras portas. Essas chaves são fáceis de
serem copiadas e abrem outras portas.
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Não se pode descobrir
ciências sem delírios. Mente quem diz.
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Há uma dose grande de
desequilíbrio no desafio da corda bamba, que se não tremer não encanta. O mesmo
ocorre com a dança. O mesmo com a pintura. O mesmo com o teatro. O mesmo
comigo.
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O peregrino não quer
ser peregrino. O peregrino apenas é peregrino. O caminho não quer ser camiho. O
caminho apenas é caminho. O artista não quis ser artista, o artista apenas quis
ser.
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Nasci numa cidade
pequena e gosto disso. Gosto do ser pequeno. O que me faz pensar grande.
...................
Como classificar nossa
arte como trabalho? Vejamos, isso se dá de achar que profissões existem.
Se cada vez mais as
pessoas se limitarem às suas profissões as variações de amor, de humor, serão
catastróficas porque correm o risco de irem definitivamente para o campo da
ciência integralista, perdendo com isso seu sexto sentido e havendo portanto um
colapso geral nas relaões.
..................
Desengança
Eu não quero feitiços
nem amebas. Estou paralisado e farto
Do insistente repouso
das coisas.
Um irmão de aqui perto
assombre
Dei-lhe amor
E o susto me causou
dor.
Eu tenho os braços em
forma de concha
Quando a maré chora,
eu seco.
A água que a pia
dispersa, eu rego.
Tenho a cabeça que é
um buraco no espaço.
Só não alcanço teus
galhos,
Árvore humana,
Irmão meu,
Eu tenho dois olhos
verdes
E uns galhos de afetos
podados
Além dos pés de
outono.
Vem me prometer.
...................
Uma paleta de cores,
uns acordes de sons primários e o pincel dissonante lambendo a tela com ruídos
e melodias que basta um assobio pra que o cego ao lado também participe da
experiência.
...............
E ainda que pequenos
somos, nesse jeito de contar que temos grande, tudo é feito como que para
serenar um dia. É só que se estamos aqui, pra matar o tempo que a nossa vida
mata, parafraseando um velho amigo que amo, Paul Gauguin: um velho amigo que
amo, Paul Gauguin: De onde viemos: Quem Somos? Para onde Vamos?
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