quinta-feira, 5 de março de 2015

Obra de Jack Diamond


Por Manoel Herzog

O DIAMANTE AMBARINO

Parte I

Pai, conta uma historia do tempo que você tinha táxi?

Pra falar a verdade, no tempo que tive táxi nada importante aconteceu, eu que gostava de cacifar esse período, aquela coisa de mostrar que passou dificuldade na vida, valorizar o passe pelas conquistas de dali pra frente.

Uma vez, filha, o pai estava no ponto de táxi do Gonzaga, quando surgiu um homem muito estranho. Usava um casacão azul de botões dourados, tipo de pirata. Tinha uma barba grisalha e aloirada, era muito elegante, mas cheirava a mar e sargaços, carregava alguma coisa de muito velho. Tinha um ar cansado, de fumante, os olhos embaçados. Perguntou em francês onde ficava o bairro Vila Nova, em Cubatão. Pra minha sorte, ou azar, o único taxista do ponto e acho que de toda Santos que falava francês era eu. Cada taxista tinha uma aptidão, o Unha chupava bala estalando saliva na boca durante a viagem, Geneval dirigia com o vidro aberto e o braço pra fora, o sovaco na porta, Maria Lúcia tinha dadinhos de pelúcia pendurados no retrovisor. Eu, falava francês. Assim, acabei tomando a vez de três companheiros que estavam na minha frente e consegui uma corrida longa, pra Cubatão, dizendo aos companheiros que se tratava de uma viagem bem curta, pra casa de uma certa Madame Villeneuve, parenta do estrangeiro, ali pertinho. Não iam perder grande coisa me cedendo a vez.

Notei as roupas dele surradas, só que mantinha um ar de dignidade, sugeria alguma riqueza oculta, que podia nem ser material. De ostentador somente no dedo anular da direita um anel de pedra enorme, cor de mel num brilho de diamante. Era diamante mesmo, confidenciou-me o passageiro, um diamante raro, ambarino, da cor quase de vidro de remédio, âmbar, valia uma verdadeira fortuna. O homem, isto dito por ele num francês arrastado, me confidenciava aquilo porque meu jeito transpirava segurança, não sabia por que mas confiava em mim, talvez pelo modo solícito  com que eu me dispus a antecipar minha obrigação e levá-lo a um lugar distante o que, julgava, era um péssimo negócio pros amigos taxistas.

Quando foi isso, pai?

Foi um pouco antes de você nascer.

Então é mentira, porque você só fala francês faz cinco anos.

Se não acredita na minha história então não conto mais.

Conta, vai. Eu acredito.

Pois eu toquei meu táxi em direção a Cubatão, ia conversando animado com o francês, reparando no diamante, cada vez mais fascinado com o brilho. Pra minha grande surpresa o homem começou a passar mal em cima da ponte do Jardim Casqueiro e teve um infarto fulminante logo que chegou o fim da ponte, já em terras cubatenses. Alguma coisa de profecia naquele infarto.

Como você sabe se era infarto e não derrame?

Eu sei porque sei. Pois ele estrebuchou e morreu bem ali, do meu lado, sem eu poder fazer nada. Pensei assim, nossa que tempos difíceis, a gravidez da minha filha tão complicada, eu sem dinheiro nenhum, Deus deve estar com raiva de mim, não sei por que, nunca prejudiquei ninguém. Enquanto pensava nessas coisas, via que tudo ainda podia piorar, a polícia achar que eu tinha matado o francês. Foi então que, lembrando ser um estrangeiro, que não tinha ninguém, nem falava a língua da gente, não era difícil largar o corpo ali no mato e me livrar de a coisa feder ainda mais pro meu lado. Logo que pensei isso olhei pra uma comunidade que tem bem ali a esquerda da Via Anchieta, chama Vila Pelicas. Tem um matagal antes de entrar na comunidade, com uma figueira gigantesca, lugar que achei bastante apropriado pra largar o corpo. Foi o que fiz, parei no acostamento, desci o cadáver no meio daquela escuridão e larguei no pé da figueira, botando umas folhas de palma por cima. Os urubus só iam achar depois de uns três dias, e eu estaria bem longe e tranquilo.

Mal cobri o corpo de palmas, no meio de todo aquele breu vi uma luz cintilar nas frestas das folhas de palma. O diamante ambarino, arrogante no dedo do defunto, brilhava através da matéria, como se a alma francesa pulsasse por vida no meio de todo aquele abandono. Ou como se o Diabo em pessoa estivesse me atentando, olha, esse diamante pode te liberar de uma situação difícil, você não é um ladrão, não está roubando ninguém, o homem está morto. Não Diabo, o que não é meu não é meu. Se Deus está dando é seu, pense bem, você nem pediu. Vade retro, tentador, não preciso da riqueza de ninguém. É, mas esse diamante bem podia custear o parto da sua filha, pense bem, é uma gravidez de risco.

Eu não sei se o diabo é tão bom argumentador ou se é a gente mesmo que põe as palavras na boca do dito cujo. Pode ser. Sei que não preciso enrolar pra dizer que Diabo-eu-mesmo acabou me convencendo, e resolvi, num primeiro momento, retirar o diamante, guardá-lo comigo, só guardar mesmo, pra caso precisasse usar no seu parto e, se não fosse necessário, devolver mais tarde, não sei pra quem, mas devolver. Afastei meia dúzia de palmas e puxei o anel daquele dedo parisiense. Não soltava. Tentei de tudo, e a pressa e o desespero e o medo de ser pego ali roubando um defunto, defunto que eu havia matado pra me apropriar de um diamante ambarino, isso o povo pensaria, tudo isso me fez tomar a decisão mais precipitada de todas. Catei meu canivete suíço, esse aqui mesmo, ó, e cortei fora o dedo do francês, levando aquele pedacinho de Paris no bolso, ornado de uma pedra valiosíssima.

Não sujou seu bolso de sangue pai?

Não, claro que não, os defuntos não sangram. Posso contar a história ou vai ficar me interrompendo?

Desculpa, conta.

Eu passei muitos dias andando pelas ruas de Santos com aquele dedo no bolso do casaco. Quando começou a feder, com o mesmo canivete, esse aqui, fazendo agora a função de chave de fenda, fui separando as carnes do metal do anel. O dedo, já empretejado, joguei de cima da ponte do Rio Casqueiro, na esperança de a correnteza o levar pra junto do corpo quando a maré subisse. Lavei o anel com vinagre e soda cáustica, depois com detergente desinfetante e desodorante, depois com leite de rosas, mas sempre fiquei na impressão de que o cheiro não saía. Um cheiro de podridão misturado a enxofre.

Cheiro de Diabo, né, pai?

Isso. Por aqueles dias eu e sua mãe íamos muito ao médico, você estava de seis meses na barriga. O médico falou que precisava fazer o parto às pressas, e que ia ficar bastante caro, cinco mil e quinhentos mangos.

Muito dinheiro, né, pai?

Muito. Muito, mas exatamente o que os contrabandistas nigerianos me deram, naquele mesmo dia, pelo anel.

Quem são esses?

Ora, não vá me dizer que nunca ouviu falar dos  contrabandistas nigerianos. São a pior espécie de gente que há na Terra, a pior não, a segunda pior, que os mais ruins de todos os homens são os capitalistas mineradores ingleses. Eles não são os piores, veja bem, são piores que os piores, são os mais ruins, porque os mais ruins são ainda mais ruins que os piores. Os capitalistas mineradores ingleses são os piores homens mais ruins do mundo.

Outro dia você falou que são os americanos.

Os americanos são descendentes deles. Se você um dia virar uma ruim eu sempre vou ser mais ruim que você, porque você é minha descendente. E pare de me atrapalhar. 

Os americanos são mais avançados que os ingleses em muita coisa.

Claro, assim que nem você é melhor do que eu e vai me superar. Eu digo que os capitalistas mineradores ingleses são uma praga porque eles, entre outras maldades de sua natureza malvada, invadem as terras de duas tribos da Nigéria, os Lulus e os Mandus. Sempre foram povos amigos, mas entre as terras das tribos existe uma jazida infinita de diamantes, sabe-se que no meio do miolo dessa jazida se encontram os raríssimos diamantes ambarinos. Os capitalistas mineradores ingleses sempre queriam se apoderar da mina de diamante das tribos nigerianas. Mas os organismos internacionais fariam muito barulho se eles simplesmente invadissem. É aí que te digo como essa gente é ruim feito um demônio. Eles em vez de invadirem, o que já seria uma grande malvadeza, plantaram uma discórdia entre os lulus e os mandus. E fizeram isso valendo-se do segundo pior tipo de gente que há na Terra, os contrabandistas nigerianos. Esses são um tipo de africano que trai o próprio povo. No tempo da escravidão eles se chamavam Capitães do Mato. Ainda hoje tem muitos deles nas fábricas, no meio dos trabalhadores, na polícia. Ganham dinheiro e promessas de igualdade dos capitalistas ingleses, que juram convertê-los em europeus, por um trabalho sujo, que é fazerem fofoca entre os lulus e os mandus até os chefes das duas tribos declararem guerra e eles todos se matarem. Já viu na televisão aquele monte de crianças africanas raquíticas, morrendo de fome? Pois é fruto da guerra que os capitalistas mineradores plantam, os pais se matam e os pequenos ficam passando fome, fazem os dois povos se dizimarem e a jazida de diamante ficar jazente. Jazente quer dizer abandonada, entendeu? Jazente, jazida, ficou bonito isso.

Mas pai, como é que você encontrou contrabandistas nigerianos em Santos?

Como é que eu encontrei? Como é que eu encontrei? Ora, como é que eu encontrei. – pausa – Muito simples. Depois que esses grandes vermes plantam a guerra entre povos irmãos, são descobertos e passam a ser odiados em seu país. Por isso fogem e vão se tornar contrabandistas. Escondem-se nos porões clandestinos dos navios que singram os mares do mundo, e descem escondido em todos os portos pra traficar pedras preciosas. É isso.

Ah.

(continua na próxima semana)

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