terça-feira, 20 de julho de 2010

Alessandro Atanes

Tenho usado em alguns artigos desde 2007 uma argumentação da ensaísta argentina Beatriz Sarlo em favor do papel que a ficção tem de avançar sobre o entendimento do mundo além do que já nos dizem a História, o Jornalismo ou a Literatura de Testemunho.

Em seu livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, Sarlo se refere especificamente a um momento em que o trauma das ditaduras latinoamericanas, até por causa da sucessão de gerações de escritores, passa a ser examinado pela literatura de ficção não mais a partir da memória de quem escreve, geralmente um intelectual sobrevivente dos porões, mas sim a partir da invenção de quem não acompanhou aquela tragédia social ou o fez apenas pelos olhos da infância, às vezes nem isso. A passagem é a seguinte:

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

Lembrei disso por que na semana passada reli partes do poema Fugindo ao cativeiro, de Vicente de Carvalho, do qual havia destacado um aspecto cinematográfico da narrativa no artigo Vicente de Carvalho, cineasta. No mesmo dia em que ia republicar o texto aqui no blog vi na TV por assinatura o anúncio da estreia de Bastardos Inglórios, filme mais recente de Quentin Tarantino. Aí não resisti a perguntar, em um pós escrito ao artigo, se a descrição de Carvalho para a luta entre um escravo mártir e a “soldadesca” da fazenda não teria imagens tão violentas quanto as que vemos em filmes de Tarantino. Hoje desfio esta semelhança.

O foyer da sala de cinema em Bastardos Inglórios

Mas não é só a questão da violência, que isso muitos filmes apresentam (a maior parte da violência cinematográfica é imbecilmente catártica). Como no caso de Bartardos..., Kill Bill e outros filmes de Tarantino, a violência de Fugindo ao Cativeiro é estilizada. Olha só esta estrofe:

Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta.
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
“Ah, prendê-lo, jamais!” respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.

São cinco versos, 41 palavras de pura violência. São dois sujeitos em luta: “ele”, determinado, o escravo mártir; e “foiçadas”, coletivo adequado para os perseguidores. Tirando 14 artigos, preposições, pronomes e interjeições, sobram 27 palavras que expressam conteúdo. Nove delas (exatamente um terço) são substantivos. Cinco deles objetos cortantes (foice duas vezes, gumes, espadas, foiçadas. Os verbos de ação são erguer (a foice, duas vezes), voltar (movimento da foice), rolar (a cabeça), cruzar (de espadas), prender (“jamais”, o foragido), responder (com foices), turbilhonar (também da foice) e os dois últimos, claríssimos: ferir e matar.

A carga de violência dos substantivos e verbos torna os adjetivos desnecessários. Só há um (“solta”) que descreve a cabeça após a ação da espada. Até o advérbio “jamais” é mais forte que o adjetivo. Destaco também que a única manifestação em primeira pessoa (“Ah, prendê-lo, jamais”) é ela mesma uma promessa de morte das foiçadas. Mais sangue que isso só na pista de dança na parte 1 de Kill Bill.

Agora, noto que cada estilo tem seu tom.

O poeta do mar narra em 1908, já distante dos fatos, a epopeia de um grupo de escravos em direção ao quilombo acolhedor na cidade de Santos nos anos finais da escravidão no Brasil, na década de 1880. O tom elevado ecoa a épica antiga. Tarantino não tem nada disso: suas imagens operam pela paródia, de baixa expressão, ainda conforme padrões da antiguidade para comédia, com os quais a cultura pop demonstra curiosa continuidade. É uma parodia que não disfarça a homenagem e a autorreferência.

É assim que Tarantino chega ao tema da Segunda Guerra Mundial em Bastardos Inglórios, em qual um grupo de soldados judeus norte americanos acaba envolvido em uma armadilha para Hitler em Paris cujo desfecho ocorre em uma sala de cinema justamente durante a apresentação de um filme de propaganda nazista.

Bastardos Inglórios é uma manifestação artística disso de que fala Beatriz Sarlo, isto é, a ficção começa a operar sobre a realidade de uma forma que o Realismo não consegue mais. Não para alterá-la – que isso é função da mentira. A virada ficcional, a tal guinada subjetiva, não é contra ou nega os fatos. Ela não engana ninguém, só propicia “pensar de fora da experiência”. A ficção permite devassar a realidade a contrapelo, como ensinou Walter Benjamim, e a chacoalha pelos ombros para ver se cai alguma coisa de seus bolsos. Talvez assim possamos obter um pouco mais de sabedoria (“se apoderar do pesadelo”).

A obra ensaística de Sarlo e o filme de Tarantino são produções do engenho humano já do século XXI. Assim, em defesa dessa argumentação a favor da virada ficcional, elaborada por um deles e realizada pelo outro, encontro apoio na conferência de Italo Calvino sobre a Leveza, realizada no ano letivo 1985/86 em Harvard e reunida posteriormente em suas Seis propostas para o próximo Milênio, que vinha relendo na mesma semana:

Se quisesse escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo [um tipo de personagem ao qual antes havia se referido] que sobreleva o peso do mundo, demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgavam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados.

Mais à frente, Calvino continua:

Habituado como estou a ver na literatura uma busca do conhecimento, para mover-se no terreno existencial necessito considerá-la extensível à antropologia, à etnologia, à mitologia.
Para enfrentar a precariedade da existência da tribo – a seca, as doenças, os influxos malignos –, o xamã respondia anulando o peso de seu corpo, transportando-o em vôo a um outro mundo, a um outro nível de percepção, onde podia encontrar forças capazes de modificar a realidade. Em séculos e civilizações mais próximos de nós, nas cidades em que a mulher suportava o fardo mais pesado de uma vida de limitações, as bruxas voavam à noite montadas em cabos de vassouras ou em veículos ainda mais leves, como espigas ou palhas de milho. (...) Vejo uma constante antropológica nesse nexo entre a levitação que a literatura perpetua.
(...)
Não me parece abusivo relacionar esta função xamânica e feiticeiresca, documentada pela etnologia e o folclore, com o imaginário literário; ao contrário, penso que a racionalidade mais profunda implícita de toda operação literária deva ser procurada nas necessidades antropológicas a que essa corresponde.

Na conferência sobre Multiplicidade, a coisa vai mais longe, e Calvino afirma e confirma o papel elaborador da arte:

A excessiva ambição de propósitos pode ser reprovada em muitos campos da atividade humana, mas não na literatura. A literatura só pode viver se se propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades de realização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter uma função. No momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo.  

Epílogo
Nesse momento de crise de fragmentação do pensamento científico, de radicalização do pensamento religioso, falência do discurso político e de esgotamento dos relatos de testemunho (ainda que não tenham deixado de ocorrer mais tragédias sociais que gerem testemunhos), com tudo isso a constante renovação linguística, textual e do discurso que a literatura propicia pode fazer a ficção despontar como depositária principal da experiência humana, um papel que sempre lhe foi negado.

Referências:
Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.

Vicente de Carvalho. Fugindo ao cativeiro. In: Melhores poemas. Seleção de Cláudio Murilo Leal. São Paulo: Global, 2005.

Bastardos Inglórios. Diretor: Quentin Tarantino. Elenco: Brad Pitt, Diane Kruger, Mélanie Laurent, Christoph Waltz, Daniel Brühl, Eli Roth, Samm Levine, Michael Fassbender, B.J. Novak, Til Schweiger. Produção: Lawrence Bender. Roteiro: Quentin Tarantino. Fotografia: Robert Richardson. EUA/ Alemanha: Lawrence Bender Productions/Universal, 2009.

Italo Calvino. Leveza e Multiplicidade. In: Seis propostas para o próximo Milênio. Tradução: Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


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