sábado, 3 de julho de 2010

Flávio Viegas Amoreira

“A vida é para mim como a névoa de um sonho...”
Vicente de Carvalho

Whitman, Lorca, Pessoa, Kaváfys, todos poetas com mesmo “sentimento atlântico do mundo”, o espaço ilimitado da literatura embebida de Mar: todos meus ancestrais argonautas, mas minha primeira fonte oceânica, foi ainda muito jovem meu conterrâneo, Vicente de Carvalho. Abolicionista, republicano, ecologista antes do termo ambientalista, amante do mundo, spinozista, panteísta, amante das mulheres; nem parnasiano, nem pós-simbolista ou pré-modernista, foi essencialmente ele! O POETA DO MAR, Vicente de Carvalho.

Admirado e rejeitado por Mário de Andrade, tido por Bandeira um dos nossos maiores líricos e lido por gerações a partir da publicação de sua obra-prima: Poemas e Canções, editado com prefácio de Euclides da Cunha em 1908 e que lhe valeu logo lugar na recém-criada Academia Brasileira de Letras. Santista, paulista, litorâneo, quatrocentão, libertário, aristocrata, satanista, com sutil capacidade de evocar temas sensualista, Vicente de Carvalho precisa ser redescoberto. Reeditado pela Global, respeitado por críticos contemporâneos como José Castelo e Claufe Rodrigues, citado por mestres como Décio Pignatari e Jorge Mautner, é um poeta orgíaco e tem mesma dimensão uterina, epidérmica, visceral que impregna os nascidos vizinhos ao Mar. Nasceu em Santos em 1866 e aqui escolheu morrer já debilitado em 1924. Com uma construção engenhosa e sutilíssima, de limpidez rara em tempos de Bilac, Vicente de Carvalho primeiro foi descoberto pelo Brasil para só dois anos após a ABL ter sido indicado à Academia Paulista de Letras: achava excesso de academias regionais e de triunfalismo. Via na atividade de escritor um ofício sagrado, mas merecedor de luta silenciosa e resguardo do mundanismo. Pescador inveterado pelos mares da Bertioga até Iguape, é com certeza um poeta do passado entre os que mais ajuda na elaboração dessa arte do verso. Era amante da palavras e não concebia a Vida sem a escritura. Devo muito a Vicente de Carvalho, a ele essa lembrança.

“Sou um escritor genuinamente paulista. Cultivo as letras com assíduo e não recatado amor, sem fingir que delas me desinteresso como de cousa secundária. De todas as funções que tenho exercido, e foram bastantes, e algumas altamente honrosas, nenhuma sobrepus ou sobreponho à de um homem de letras”. Paulista do litoral, atlântico, profundamente escritor! Assim me sinto como meu antecessor brilhante. Eis um trecho dos mais belos poemas que li sobre existência e nosso destino de Sísifo, eternos inquietados com absurdo da existência:

Só a leve esperança , em tôda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência , resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em tôda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Tôda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos

Tudo aí contido nesse trecho imortal de “Velho Tema”.


Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo erriça o pêlo !
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas – a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio

Palavras ao Mar, ode maior ao tigre marinho.


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