terça-feira, 4 de outubro de 2011

Um conto de Manoel Herzog

Houve tempo em que não acreditava em nada além do que viam os olhos. Ainda, do que estes viam, algo havia de que desconfiasse, negando evidências. Esse tempo se foi, hoje de nada duvido. Antes, a única coisa em que efetivamente não acredito são as coincidências.

Naquele tempo o Casqueiro era um bairro pobre, quase favela, as ruas de terra tinham valas, esgoto a céu aberto. Pior do que é hoje a Vila dos Pescadores, antiga Vila Siri, favela que está virando bairro.

Sandra conheci na escola. Era mais velha dois anos. Não bastasse a natureza avançada das meninas, desenvolvem-se antes de nós na adolescência, estes dois anos criavam, à época, um distanciamento abissal. De maneira que sempre fitei Sandra de um ponto escondido, atirador de elite cujos tiros malogravam. Posição privilegiada, pontaria péssima.

Doeu quando ela, minha musa sem o saber, passou a se interessar pelos garotos do colegial. Estávamos na sexta série. Fosse fazer uma colocação de acordo com nossa maturidade sexual, ela estaria às portas da faculdade, aspirando a bailinhos, eu ainda no primário. Chamava assim naquele tempo, colegial, ginásio e primário. Assim foi que amarguei ver Sandra de graças com jogadores de futebol e vôlei, os bons da educação física, sujeitos que já ostentavam muitos pentelhos e alguma barba, bem mais altos que eu. Isto a ponto de sequer considerarem minha hostilidade, viam-me apenas como um fedelho mal humorado.

Era um colégio público de subúrbio, o Castelão. Dos amigos do primário, dois terços chegaram ao ginásio. Destes, um oitavo, digamos, chegou ao colegial. Dali pra faculdade fomos eu e mais dois, que me recorde: Luciano, hoje economista, e Zeca, advogado. A favela, o desemprego dos pais, o trabalho precoce dos estudantes, tudo tragava o contingente de meninos à vala da pobreza, financeira e cultural. Conforme o Casqueiro virava bairro de classe média, a população original, tangida, ia saindo. Sandra também, chegou só ao primeiro colegial. Mudou pra Vila Socó, hoje São José, em 1982, o que não impediu que a reencontrasse, quando já cursava eu a universidade e tinha um emprego relativamente bom numa indústria. Dei sorte na vida. Me aguentei lá. Não fui pra favela.

Isto se deu de forma curiosa, no princípio dos tempos em que comecei a ver com olhos mais céticos as coincidências. Trabalhava comigo, lombando sacarias, um tipo por nome Pedro, alcunhado Venta-de-Boi. Era um negro de nariz grande e achatado, as narinas tão anchas que se podia, diziam, ao levantar do queixo, ver-lhe os miolos. Sujeito rude e briguento, metia-se em confusões por nada. Diziam ser macumbeiro. Certa vez o engenheiro da área onde trabalhava caiu doente, perdeu todos os cabelos e vinte quilos. Nenhum médico descobriu. A AIDS estava começando. Todos falavam que fora macumba do Pedro-Venta-de-Boi. Ele não negava, gozava o prazer do poder atribuído.

Não sei por que situação difícil passei que me fez fraquejar no ceticismo, fiz ao Venta uma consulta espiritual. Ele se dispôs a me ajudar, levando-me ao centro onde, soube-o ali, era pai-de-santo. Pedro morava então na Vila Socó, isto foi uns anos antes do incêndio que destruiu a favela. Fomos no meu carro, que até carro eu já tinha naquele tempo. Dei sorte na vida. Perguntou se teria problema dar carona à sua vizinha, falei que não. Pois a vizinha era a Sandra, ainda bela, só um tanto judiada. Não lembrava mais quem eu era. Ali, de carro e tudo, pentelhos e barba, falando bonito, fui encantando a Sandra até o centro. Dias depois da consulta liguei para tomarmos um chope. Saí da minha tocaia e baleei Sandra à queima roupa. Era o dia 27 de dezembro de 1982.

Consolidado o namoro, nos juntamos. Fiquei amigo do pai dela, Pedro também, por apelido Pedrão-Bigode, um tipo forte e calado, com o qual ninguém se metia. Tinha um bar na favela de Vila Socó antes do incêndio de 1984. Depois, indenizado, mudou pra Vila dos Pescadores. Montou outro. No bar do Pedro se jogava a dinheiro. Polícia não se metia muito, levava algum e deixava quieto.

A coisa com a Sandra durou uns anos, bem mais do que eu suportava. À medida que avançava no emprego e no estudo, criou-se uma distância entre meu mundo e o da Sandra. De onde estava, esgotado o Casqueiro na minha vida, tinha eu dois caminhos: mudar para Santos, de preferência pro elegante bairro do Gonzaga ou ir pra favela. Sandra não quis mudar, fez valer a baixeza de sua classe. Não bastasse a sucessiva gritaria com que expunha minha intimidade aos vizinhos, achou de fazer concessões a meus antigos inimigos de escola, que começou a receber em casa. Estes hoje não deveriam me incomodar, simplórios, menos aquinhoados na vida que eu. Mas Sandra procurava sua turma, e eu passava o constrangimento de perder ponto para quem julgava inferior. Não tardou a que eu desse uns espanques na Sandra, merecendo o ódio de meu sogro Pedrão-Bigode, homem que se mostrou violento e, sendo amigo de policiais, me levou na vida a algum risco. Esse combinado de nuances da miséria começou a me incomodar. Neguei minhas origens, sumi do Casqueiro.

Além disso a que me vi exposto, ainda deu o Venta-de-Boi, Pedro que nem o pai da Sandra, e tão perigosa ligação para mim quanto, de me hostilizar. Pedras no meu caminho. Fui obrigado a desprestigiá-lo numa situação conflituosa na companhia. Tomei as dores de outro funcionário, disso dependia uma promoção que eu almejava. Não pensei duas vezes para vender o Venta, que guardou profundo rancor por tal fato. Também porque entendeu que depois do enrosco com a Sandra eu passara a desprezar nossa amizade, ele se julgava responsável pela nossa união, queria que frequentássemos sua casa, etc. O Venta era bom pra roda de samba, mas não dava pra privar de muita intimidade com ele, ainda mais agora que eu estava perto de me formar, já encarregado, quase engenheiro. O problema era que além de ser um sujeito valente e ignorante, o Venta tinha seus brios e, ofendido, deu para me afrontar de uma forma complicada, escarrando quando eu passava. Fiz de bobo um tempo, depois achei que ia acabar tendo que tomar alguma atitude, para não ficar feio na fotografia. Para não ter de ir a vias de fato, sugeri à chefia sua demissão. Ele nunca soube.

Poupou-me deste trabalho ingrato de usar de valentia o Zé Caju, no exato dia 27 de dezembro de 1991. Zé Caju não, a Providência. Pedro-Venta foi demitido da companhia. Desempregado, achou de vender droga. Tornou-se um sujeito verdadeiramente perigoso, dando vazão a sua veia de valente e angariando fama na favela como patrão do tráfico. A miséria embrutece. Se eu estava livre dele no meio profissional, agora calhava de cruzá-lo pelas ruas, visitava sempre o Casqueiro. Aí entrou o Zé Caju na história.

Este era um sujeito magrinho, bobo de tudo. Vivia no bar, gostava de tomar umas canas. Não mexia com ninguém, não fosse pela índole pacífica, mas também porque o porte físico acanhado não o garantia. Era um bosta, mas ninguém desgostava dele. Estava no bar do Plácido, perto da passarela que atravessa à Vila dos Pescadores, tomando sua cerveja, naquela tarde. Pedro-Venta-de-Boi entrou e chegou a trocar algumas palavras com ele – eram amigos. Não sei no que deu a coisa, mas depois de algum tempo o Venta passou a desaforar o Zé Caju, que ficou bem quietinho. Além de desaforar, deu-lhe uns tapas na cara, e mandou ele vazar do bar. Dali o Pedro atravessou pra favela. Zé Caju, engolindo o choro, não acatou o mandamento. Choro engolido fermenta, é um veneno. Não sei onde conseguiu aquele punhal, mas se armou e ficou no bar, chegando ao desaforo de pedir mais uma cerveja, não acreditava que o valente fosse voltar. Armou-se só pra dizer a si mesmo que era homem. Só que o Diabo não dorme nessas horas, e o Venta, desempregado e agora bandido, tão logo chegou em casa, não sei por quê achou de voltar no bar para bater em mais alguém. Digo não sei por quê, mas sei que se trata de algo diverso de coincidência. Venta-de-Boi sequer se deu ao trabalho de achar novo destinatário pra sua ignorância, o próprio Zé Caju, desobediente, quedava ali, ignorando, e mais, tripudiando o comando de outrora. Saiu dando-lhe sopapo, cego de bebedeira, droga e raiva, e com o Cão assoprando maldade em sua cabeça. Era a hora dele. Não contava que o Zé Caju guardasse o punhal embaixo da mesa, o mesmo que varou seu umbigo, indo sair de ponta bem perto do rabo. Venta ficou três dias no hospital, sempre que lembro chego a sentir a dor da punhalada no meu próprio umbigo. Depois dos três dias não agüentou e, para alegria de muitos, eu inclusive, finou-se o Venta. Quase ninguém foi no enterro.

Eu lembro que até a Sandra, que tinha medo do Venta-de-Boi, ficou aliviada depois do crime. O Zé Caju vazou lá pros lados de Mato Grosso. Passou uns dias me ligou – eu nem tinha amizade com ele. É que eu conhecia um advogado, o Zeca, amigo de escola. Falei com ele, preparou a apresentação do Zé Caju, que nem chegou a ir em cana. Legítima defesa: defendeu seus brios. Talvez se houvesse cansado de ser um bosta na vida, dera de carregar consigo, nos últimos tempos, o punhal do pai, o velho nunca aceitou sua covardia. Prestou contas ao pai, estavam quites. Morreu uns meses depois, atropelado na Via Anchieta, bem embaixo da passarela de acesso à Vila – preguiça de subir, ou vontade de cumprir o destino.

Por duas semanas fiquei na boa com Sandra, que não fez mais baixaria. Achei mesmo que o Venta–de-Boi fosse um agouro enquanto vivo, e que perdera a condição de espectro com o trágico passamento, deixando minha vida em paz. Essas coisas esotéricas geram muita especulação, e sempre se fica sem uma comprovação científica, lamentavelmente. Depois, concluí que a paz trazida pela ausência do Venta durou só o tempo de seu ingresso pleno no mundo do além. Lá chegando, no prazo das duas semanas de minha breve felicidade conjugal, voltou a importunar, colado o grau de oficial de fantasma, e a Sandra voltou a berrar e ficar de graça com os otários do bairro.

Usei de alguma violência com ela, seguramente pedagógica e bem inferior à que ela merecia. Não considerou assim, no entanto, o pai dela, Pedrão-Bigode, e proferiu no bar, no meio da jogatina, minha sentença, jurando-me e levando a filha de volta para casa.

Por aqueles tempos achei mais seguro realizar meu antigo sonho, e mudei pro Gonzaga, onde aluguei um kitchnete barato. Os amigos meganhas do Pedro-Bigode não iriam atrás de mim. Eu é que ia de vez em quando atrás da Sandra, a gente se encontrava, dava uma, depois brigava. Muito feio. Cheguei a pensar que nunca ia me livrar daquilo, e que o Pedrão teria razão se me matasse. Não é fácil chegar a engenheiro.

Não tardou muito a que a Providência viesse de novo em meu auxílio. Um dia – dia 27 de dezembro de 2000 - estourou uma guerra de traficantes na favela, alcaguetaram a jogatina no bar do Pedrão-Bigode, dizendo que lá rolava droga, e a polícia, num tiroteio, acidentalmente alvejou o pai de minha doce inimiga. Fui no enterro, por uma questão de consideração, e a despeito da briga recente. Aconteceu no cemitério do Saboó, exatos dezoito anos depois do dia em que encontrei a Sandra, e nove meses do dia em que mataram o Venta-de-Boi. Foi este o penúltimo dia em que a vi. Há quem creia em coincidência, e até eu mesmo creditaria em tal conta o fato, não fosse ter visto acompanhar o féretro do Bigode ninguém menos que o Venta-de-Boi e o Zé Caju, redivivos, fitavam-me de longe. Travei, impossibilitado de gritar ou denunciá-los naquela fúnebre cerimônia. Fiz orações e tributei meus respeitos a este fato, que interpretei como de sinal divino.

Depois de outros nove meses, a Sandra foi quem morreu, vinha perdendo peso e cabelos. Eu não ia visitar. Envolvido naquela lama, julgava muita sorte não ter sido contaminado. Hora de parar. Recusou tratamento, que então já existia, se eu não fosse vê-la. Não fui, pagando meu tributo ao medo e escapando de comentários – vai que me julgassem contaminado. Uma vez morta, também não fui ao enterro – fobia, dela e do Saboó.

Depois disto a vida deslanchou. Moro aqui no Gonzaga, nem conheço meus vizinhos. Passo pelo Casqueiro todo dia pra trabalhar na Companhia, em Cubatão, mas batido. Sou um engenheiro considerado no meio – ao menos entre a chefia. Os comandados têm certa reserva comigo – na dividida, vejo meu lado. Faço minha oração diariamente pelos mortos na tragédia da Vila Socó, na ida e na volta. Sinto compaixão por estas vítimas da miséria da qual escapei. Dei sorte na vida.

No dia 27 de dezembro de 2009, voltava da companhia, de carro, para casa. Havia um dos tradicionais congestionamentos na entrada da cidade, devido a um acidente em frente ao Parque Maria Patrícia. Entrei, para tomar atalhos, pelas ruas laterais do bairro Chico de Paula, passei por trás do Instituto Médico Legal, vim cortando por entre conjuntos residenciais até os fundos do cemitério. Nunca tinha andado por ali. Pensava que por detrás houvesse um acesso ao Morro do Saboó, e dali de volta à pista. Engano: o fim da rua de trás do cemitério dá-se numa parede. Fiquei parado, entre a frente de umas casas antigas e os fundos das carneiras, uns cinco andares de mortos deitados. Frente a esta parede branca, entre o limo da caiação dos fundos do cemitério e a porta de uma casa que limitava direto com a rua foi que eu vi os quatro conversando animadamente: os Pedros, Venta-de-Boi e Bigode. Ao lado deles tomava parte no assunto o Zé Caju, um bosta. Mais que tudo isso, ali estava também a Sandra, de shortinho e aparelho no dente, e dava um jeito de esfregar a bunda meio sem querer na cintura do Zé Caju. Saí dali de marcha à ré e nunca contei isso a ninguém, pra não pagar de louco. Vinte e sete anos passados, três vezes nove os fatos sucedendo. Quem quiser jogue na conta do imponderável, ou diga que são coincidências. Para mim, há uma orquestração.

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