segunda-feira, 11 de maio de 2015

Mona Lisa: Marcel Duchamp’s “L.H.O.O.Q”

Por Nelson de Oliveira
  
No âmbito da criação artística e literária, adoro colagens, citações, imitações, reciclagens, remix, incorporações, duplicações, samplers, apropriações e cópias. Adoro sátiras e farsas. Adoro paródias, pastiches e, é claro, plágios.

Em 1992, o escritor João Silvério Trevisan foi denunciado e julgado como plagiário. A denúncia partiu de alguém muito próximo do autor, um rapaz chamado Alberto Orozimbo, que alertou: “O romancezinho que vocês acabaram de ler não passa de um grosseiro pastiche construído com toda a espécie de plágio e adulteração de outras obras.”

O romance em questão é O livro do avesso, publicado nesse mesmo ano, pela paulistana Ars Poetica. Dividido em duas partes espelhadas, seu protagonista é o próprio Alberto Orozimbo, um publicitário-poeta insatisfeito e azarado, que na primeira parte acaba se envolvendo com marginais, policiais corruptos, loucos, vagabundos e terroristas.

Na segunda parte — O avesso do livro —, durante uma assembleia tensa fica provado que Trevisan, o Grande Plagiador, construiu sua saborosa narrativa policial com cenas, situações e reflexões tiradas de Chesterton, Hitchcock, Borges, Mario Faustino, Fritz Lang e muitos outros escritores, dramaturgos e cineastas. Por que razão ele fez isso?

A justificativa está na orelha do livro: “Num mundo em esgotamento, onde se vive a permanente sensação de que tudo ficou velho, a reciclagem não é mera solução resignada deste final de século. Reciclar, na verdade, tornou-se um estilo. No âmbito da criação artística e da poesia, reciclar apresenta-se como um verdadeiro modo de ser.”

Essa é a justificativa geral do modernismo e do pós-modernismo para as paródias, os pastiches e os plágios realizados nos últimos cem anos na literatura e nas artes.

Uma década antes de O livro do avesso, a intertextualidade também movimentou boa parte de Lanark, o fabuloso romance do escocês Alasdair Gray. No final dessa obra-prima publicada em 1981, ocorre um divertido debate entre o protagonista indignado e um autor resignado. Detalhe: totalmente apartado de Alasdair Gray, esse autor é apenas mais um personagem da narrativa, uma interface entre o autor empírico e o livro que está sendo escrito. A certa altura ele explica ao protagonista:

“Sua sobrevivência como personagem e a minha como autor dependem de atrairmos uma alma viva para dentro do nosso mundo impresso e prendê-la aqui por tempo suficiente para roubar a energia imaginativa que nos dá vida. Para enfeitiçar esse estranho, ando fazendo coisas abomináveis. Estou prostituindo minhas lembranças mais sagradas, transformando-as em palavras e frases as mais comuns possíveis. Quando preciso de frases ou ideias de mais impacto, roubo-as de outros escritores, geralmente distorcendo-as para mesclá-las às minhas próprias.”

Em seguida é apresentado ao leitor um esclarecedor Índice de plágios, indicando a origem da maioria das cenas, situações e reflexões copiadas de outras obras. Um importante aviso precede esse índice:

“Três são os tipos de roubo literário neste livro: plágio em bloco, em que o trabalho de outra pessoa é impresso como unidade tipográfica distinta; plágio embutido, em que palavras roubadas são ocultas no corpo da narrativa; e plágio difuso, em que cenários, personagens ou ideias são roubados sem as palavras originais que os descreviam. Para economizar espaço, esses serão doravante referidos como Blopag, Emplag e Diplag.”

Visito minhas estantes em busca de outros exemplos de obras-colagens e encontro um magnífico artefato antropófago: a trilogia No coração dos boatos, de Uilcon Pereira, publicada no início dos anos 80. Movida pelo mais refinado nonsense, essa satírica máquina-de-plagiar interroga autores e autoridades, reciclando séculos de tradição literária.

Mais adiante, esbarro nos livros explosivos do terrorista Glauco Mattoso (“o plágio é mais honesto que o original, ladrão que rouba ladrão tem perdão perpétuo”, Artefacto). Ao seu lado, respeitando mais a ordem afetiva do que a ordem alfabética, encontro os livros não menos explosivos do não menos terrorista Sebastião Nunes e, em seguida, duas coletâneas do poeta-performer português Alberto Pimenta. Na poesia recente de língua portuguesa, esses são os três apocalípticos cavaleiros da estética da provocaçam, canibais oswaldianos que não hesitaram em expropriar da falida autoridade intelectual uns bons nacos de carne.

Em outra prateleira encontro o best-seller Boca do Inferno, de Ana Miranda, lançado em 1989. Esse romance historiográfico incorpora parágrafos do padre Antônio Vieira e poemas de Gregório de Matos, sem avisar o leitor. No acalorado debate veiculado pela imprensa, reunindo jornalistas e críticos literários, foram muito repetidas as palavras colagem, apropriação, citação, intertexto, pastiche e plágio (esta com bastante cautela).

Quanto ao melhor nome pra essa transgressão, dá pra notar que o consenso ainda está longe. O fato indiscutível é que a livre manipulação de textos alheios, sem a autorização dos autores ou a indicação da verdadeira paternidade, é um procedimento comum na arte e na literatura. Basta digitar em seu buscador preferido as frases “plágio na literatura brasileira” e “plágio na literatura mundial”, por exemplo, que surgirão dezenas de outras obras, além das citadas acima.

Como a teoria literária tem lidado com essa questão? Da maneira mais generosa possível: legitimando a transgressão e as obras.

Mas o problema da terminologia persiste. Nos manuais, dicionários e enciclopédias, a separação entre paródia, pastiche e plágio é sempre imprecisa e às vezes contraditória.

Bastante sucinta, a definição de plágio do dicionário Houaiss − “apresentação feita por alguém, como de sua própria autoria, de obra intelectual produzida por outra pessoa” − não difere significativamente da definição de outros dicionários e enciclopédias, e do senso comum. A dificuldade é que essa definição só contempla as situações mais nítidas: quando alguém simplesmente cola seu nome em cima do nome do autor de um romance ou conto, por exemplo, e publica o texto como se fosse seu.

Não é o que acontece nas obras citadas há pouco. João Silvério Trevisan e Alasdair Gray indicam, no corpo dos respectivos romances, a autoria das cenas, situações e reflexões tiradas de outras obras. Uilcon Pereira e Ana Miranda, ao contrário, optam por não explicitar o jogo intertextual. Isso caracterizaria o plágio? A maior parte da teoria literária garante que não, preferindo classificar como paródia, pastiche etc., de acordo com a intenção do autor, analisada individualmente.

Linda Hutcheon, estudiosa do pós-modernismo, tenta pôr ordem na casa, em seu conhecido Uma teoria da paródia. O assunto desse ensaio é obviamente a paródia, mas isso envolve refletir também sobre as estratégias discursivas vizinhas. A pesquisadora canadense define seu objeto de estudo como “uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica”, ou seja, “paródia é uma repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança”.

É fato bastante conhecido que vivemos há décadas uma crise da noção de autoria, crise que expõe a ficção romântica do sujeito como fonte coerente e constante de significação.

Quando um parodista incorpora frases originais de outro autor, misturando-as com frases de sua própria autoria, ocorre uma nova contextualização, mesmo se não houver qualquer indicação de paternidade. Essa é a lei fundamental da poética do anacronismo: qualquer texto fora do contexto é outro texto. Aliás, é bom lembrar que essa lei coloca em xeque principalmente a noção de roubo, veiculada pela tradicional definição de plágio. Borges refletiu sobre essa questão no conto Pierre Menard, autor do Quixote.

“O plágio é necessário, o progresso exige”, escreveu Lautreamont, no século 19. “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”, repercutiu Picasso, tempos depois.

Para um grande número de poetas e artistas radicais (militantes do playgiarism, movimento Neoista, grupo Wu Ming etc.), hoje o plágio é também uma forma de arte. Estando ou não de acordo com essa militância subversiva, é importante reconhecer que existem ao menos dois tipos de plágio.

No primeiro, há a intenção de enganar: o plagiário deseja tomar o lugar do verdadeiro autor. Pra ele é fundamental que o verdadeiro autor desapareça, pra que possa assumir seu lugar. No segundo caso, também chamado de paródia, pastiche etc., é forçoso que o verdadeiro autor seja reconhecido, do contrário o leitor não perceberá o jogo intertextual. Obviamente, esse procedimento criativo exige um leitor competente, capaz de reconhecer a apropriação-citação-colagem mesmo sem qualquer indicação bibliográfica fornecida pelo plagiário-parodista-pasticheiro. A poética do anacronismo exige um leitor sofisticado, treinado na arte sutil da ironia.

Certos autores (João Silvério Trevisan e Alasdair Gray) explicitam as regras do jogo no final da própria obra, enquanto outros (Uilcon Pereira e Ana Miranda) mantêm ocultas as regras, pois faz parte do jogo que o leitor-investigador descubra tudo, incluindo as regras e a intenção irônica. Essa proposta exige um leitor mais participativo, mais comprometido com a cultura literária.

Em Uma teoria da paródia, Linda Hutcheon argumenta:

 “A paródia pode ser vista como uma força anárquica, que põe em questão a legitimidade de outros textos. Ao destronar reconhecidas normas literárias, a paródia − a apropriação e o plágio também − questiona o estatuto da arte como propriedade individualizada.”

“Quando falamos de paródia não nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira. Consideramos também uma intenção de parodiar outra obra (ou um conjunto de convenções) e o reconhecimento dessa intenção, ou seja, a capacidade de localizar e interpretar o texto de fundo em sua relação com a paródia.”

 “Como qualquer código, o código paródico tem de ser compartilhado para que a paródia seja afinal compreendida como paródia. Quer ela se pretenda subversora do cânone estabelecido quer força conservadora, quer vise homenagear ou ridicularizar o texto original, em qualquer dos casos o leitor tem de decodificar como paródia para que a intenção do autor seja plenamente realizada.”

“Se o leitor não consegue reconhecer uma paródia como paródia (já por si uma convenção literária canônica) e como uma paródia de certa obra ou de um conjunto de normas (no todo ou em parte), então falta a ele competência. Por essa razão, a paródia é um gênero que parece florescer essencialmente em sociedades democráticas culturalmente sofisticadas.”

Na arte e na literatura, a colagem, a reciclagem e a incorporação de material alheio, citando ou não a fonte, são procedimentos fundamentais e legítimos da poética do anacronismo (paródia, pastiche, plágio etc.). Um sem-número de escritores fez e faz uso dessas estratégias compositivas: Shakespeare, Büchner, Proust, Joyce, Eliot, Pound, Brecht, William Burroughs, Italo Calvino, Tom Stoppard, Valêncio Xavier, Michel Houellebecq, Yann Martel, Helene Hegemann…

Mas se engana quem acredita que essa legitimidade poética é soberana na sociedade contemporânea. Sobre esse assunto, soberano é o código penal. A lei repudia e combate vigorosamente a poética do anacronismo. Apropriar-se da obra de outra pessoa, seja de que modo for, é crime e a pena é severa.

Cuidado, inocente autor. A maconha ainda hoje é um caso de polícia, então posso afirmar que a maconha da criação artística e literária é o plágio. Mas se o amplo debate sobre a maconha já ganhou até um documentário, Quebrando o tabu, capitaneado por Fernando Henrique Cardoso, o plágio criativo ainda é uma zona subterrânea de militância e resistência.

Para os operadores do direito, essa conversa de que “o plágio é uma forma de arte” não cola. O direito autoral não aprecia nem um pouco esse papo sutil sobre intertextualidade. E para os olhos e ouvidos da lei não existem matizes: colagem, reciclagem, remix, incorporação, duplicação ou cópia, tudo é plágio.

A dúvida é: a arte e a literatura podem ser domesticadas pelo capital? Devem respeitar normas impostas de fora, regras comerciais que ignoram as regras estéticas? Pra evitar processos judiciais, os parodistas-pasticheiros-plagiários mais cuidadosos são obrigados a trabalhar apenas com os textos que já caíram em domínio público. Trabalhar com material contemporâneo, nem pensar.

Mas os parodistas-pasticheiros-plagiários mais atrevidos se recusam a abaixar a cabeça diante da lei. Não aceitam qualquer limite para a criação. A declaração abaixo, encontrada acidentalmente na web, sintetiza essa posição ideológica:

“Não devemos esquecer que o plágio é um exercício altamente criativo, que cada ato de plágio traz um novo sentido ao trabalho plagiado. Infelizmente, isso não muda o fato de que as forças capitalistas que controlam a cultura ocidental condenaram à ilegalidade o plágio dos textos modernos. Porém, não permita que isso o impeça de plagiar trabalhos modernos. Algumas precauções sensatas irão protegê-lo da perseguição. A maneira básica de evitar a violação de copyright é tomar a ideia e o espírito de um texto sem realmente copiá-lo palavra por palavra. Um dos melhores exemplos disso é 1984, de Orwell, que é a reelaboração direta de Nós, de Zamiatin. Qualquer pessoa com interesse sério no neo-plagiarismo deveria passar algum tempo considerando esses dois textos.” Grandes Ovos Negros (http://dedos.info/gon)

A história da arte e da literatura dos últimos duzentos e tantos anos é, em grande parte, a história das grandes transgressões. A princípio, contra a moral e os bons costumes. Muita gente que hoje endeusamos já sentou no banco dos réus. Sade, Goya, Almeida Garrett, Flaubert, Joyce, Grosz, D.H. Lawrence, Allen Ginsberg e Maria Teresa Horta não foram os únicos processados. Inúmeros artistas e escritores foram levados ao grande tribunal do puritanismo, acusados de obscenidade e indecência.

A lei trata o plágio, hoje, como tratava o homossexualismo tempos atrás: perseguindo, humilhando e punindo judicialmente os parodistas-pasticheiros-plagiários. Não podemos esquecer que a legislação que proibia as relações homossexuais era chamada de alvará do chantagista. Oscar Wilde foi vítima de diversas tentativas de chantagem, por garotos de programa, antes de ser condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados.

Isso conterá os delinquentes da criação artística e literária? Duvido muito. Uma pequena parcela das criaturas criativas só encontra sentido na transgressão. Não aceita ser domesticada. Onde existir uma fronteira com uma placa de não atravessar, ela entenderá como um convite para a desobediência.

“Para muitos, a paródia é uma forma de crítica séria, embora sua ação ocorra muitas vezes por meio do ridículo. Como forma de crítica, a paródia tem a vantagem de ser simultaneamente uma recriação e uma criação, fazendo da crítica uma espécie de exploração ativa da forma. Ao contrário da maior parte da crítica, a paródia é mais sintética que analítica. Entre os que defendem essa função da paródia, W.H. Auden talvez seja o que a articulou de modo mais notável. Na sua utópica Escola para Poetas, a biblioteca não conteria qualquer obra de crítica literária e o único exercício crítico pedido aos estudantes seria a escrita de paródias.” (Linda Hutcheon)

No âmbito da pesquisa acadêmica, por exemplo, os parodistas-pasticheiros-plagiários são caçados sem piedade. Nossas faculdades de artes e letras ainda não perceberam que sua função não é incentivar apenas a investigação científica. É também estimular a investigação poética e estética.

Aborrecido com a baixa qualidade das dissertações e teses produzidas pela pós-graduação de certa universidade estadual, um amigo devaneou: “Minha vontade é produzir um pastiche de pesquisa acadêmica, uma colagem de textos alheios, inventando fontes e citações, pra defender uma premissa absolutamente nonsense.”

“Faça isso e você será fuzilado em praça pública”, eu disse.

“Não seria maravilhoso?!”

Sobre o autor

Nelson de Oliveira ainda não nasceu. Para não assustar os amigos, prefere mentir que nasceu no dia 16 de agosto de 1966, em Mahagonny, maior cidade da Ilha do Dia Anterior. É ensaísta e professor livre-docente de literatura xamânica na Universidade de Macondo (Unimac). Pesquisa a imortalidade por meio do upload da consciência. Só acredita em biografias imaginárias. E na beleza moral do céu estrelado dentro de nós.

1 comentários:

  1. Sobre a mesa dois ovos idênticos. Absolutamente iguais. De um nasce uma serpente. Do outro um tal de sertepen. Quem pode dizer qual deles não é a cria da galinha?

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