terça-feira, 4 de novembro de 2014

ZONA DE LEITURA

Por Manoel Herzog





Durante a guerra de Troia Heitor, general e filho do rei, matou Patroclo, o amigo-amante de Aquiles. Tomado da dor da perda, o herói épico pelejou com determinação até subjugar o exército inimigo e matar Heitor. Não satisfeito de só matar, amarrou o corpo aos cavalos de sua tropa e ficou esculachando, arrastando o defunto na areia durante vários dias, frente ao inimigo sitiado, e ao rei de Tróia, Príamo, que assistia inerme o filho ser vilipendiado pela ira daquela viúva insana que Aquiles se tornara.

Rapaz, viúva é bicho brabo. Lembro de mainha, nos tempos que pai se foi, chorou, xingou, blasfemou e tudo, até contra Nosso Senhor. Eu falava, Mainha, se quiete, Deus não se agrada, e nada, ela xingava, desaforava. Depois serenou.

Agora, mangar de viúva não mango não. Tem que respeitar, sua dor é a dor de todos nós. Todos temos um calcanhar.

Homero era poeta sabido demais, foi inventor das duas famílias de heróis que conhecemos, 1) o semideus e 2) o homem turbinado. Aquiles e Ulisses. Jesus Cristo e os Santos. Superman e Batman. Hércules e Prometeu.

A origem de tudo está num mito filho do Deus supremo com uma mortal, criado por um pai adotivo que aceita o adultério da esposa, um filho meio humano meio divino que vive seu tempo na terra e realiza trabalhos, pra no fim ser dado em sacrifício e subir aos céus, indo viver ao lado do pai: Hercules, e qualquer semelhança não é mera coincidência.

Aquiles, na Ilíada, poema épico de Homero, é o tal modelo. Filho da deusa Tétis, foi banhado no rio Estige ficando invulnerável, à exceção do calcanhar por onde se o segurou. Ulisses, na Odisseia, segundo poema épico de Homero, não tem origem divina, é humano, e supera as dificuldades com seu talento. É um descendente remoto de Hercules, mas não tem origem divina direta. Feito os santos do catolicismo, que não são filhos de Deus que nem Jesus,  mas operam milagres.

Importa-nos aqui falar de Aquiles, filho direto de Hércules na tradição helênica. Aquiles amava Patroclo (Hércules amava Iolau), e Patroclo foi morto em combate. A Ilíada é portanto um poema que se volta sobre o tema da ira. O momento culminante da obra é quando Aquiles mata Heitor e humilha Príamo, seu pai, açoitando o cadáver do filho. Depois de dias de chacota, acaba por reconhecer a grandeza do inimigo, toma-se de compaixão e devolve o corpo de Heitor a Príamo, que então lhe dá sepultura digna. Embora meio divino, Aquiles tem em si o germe da intolerância, do ódio, da ignorância. Só o sofrimento digno e calado do rei de troia vai aos poucos o chamando à realidade. Na grandeza que se espera de um herói, ele reconhece que abusou e devolve o defunto. Sua ira nasce de uma frustração, do roubo do objeto de seu amor, seu amiguxo Patroclo. Portanto, temos aqui uma personagem que não dominou suas paixões, caminho por onde o homem comum atinge o status de herói, ou santo.

Vivemos coisa parecida hoje. Ficam aí, arrastando um defunto, e já está é fedendo. Devolva-se, que enterrem pra acabar logo esse luto infame. Movidos por paixão, direitistas choram a morte de seu general. A esquerda, feito Aquiles, foi lá e matou, de pirraça. Ganhou-se, o inimigo não merece piedade, mas talvez já se tenha arrastado demais esse cadáver. Bora consolidar a Grécia que, não esqueçamos, é um balaio de gato formado de ilhas divergentes entre si, que precisam, mais do que nunca, se unir em torno de um ideal comum. Só se faz isso falando a mesma língua, aprenda-se com os gregos. Acima de tudo: nunca se deve esquecer que todos temos um calcanhar vulnerável do cacete.

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