segunda-feira, 19 de março de 2012

Alessandro Atanes, a partir da coluna Porto Literário

Nos últimos textos apresentei algumas leituras de autores que se utilizam dos relatos da memória para tecer poemas, narrativas, contos e romances. São obras que se debruçam sobre a experiência recente de tragédias sociais como Vila Socó (Marcelo Ariel), das ditaduras latino-americanas (Roberto Bolaño e Rodrigo Naranjo, ao qual voltaremos) ou, duas gerações antes, o destino forçado de emigrantes que se afastavam ou fugiam da ascensão do nazismo (W.G. Sebald). Elas fazem isso através de uma perspectiva em que a fabulação, ao poder vivificar qualquer situação, faz da literatura uma forma de conhecimento sobre o mundo. Aos exemplos:

I - A experiência e a ficção
É comum que acontecimentos históricos como os acima, de grande trauma, sejam objeto de uma profusão de relatos (ainda que o caso de Vila Socó seja discutível em relação a isso) marcados pela primeira pessoa. Geralmente escritos por sobreviventes, tem como chave de leitura a autoridade moral de quem testemunhou ou sofreu os fatos. Os sobreviventes são aqueles que entraram na máquina do terror e de alguma forma saíram dela.

Nas últimas duas décadas (1990-2010), esses e autores autores (poderia citar também o português Gonçalo Tavares) vêm acrescentando novas camadas de reflexão sobre fatos como o terror, a barbárie militar e o autoritarismo de Estado que assolaram o breve século XX. Nesse mundo do Estado de Exceção contínuo, eles usam o testemunho como matéria-prima para uma ficção que pretende ir além da memória.

No livro de Ariel, o narrador vê um incêndio por dentro. Em outro caso, o homem que narra as aulas de Marxismo que deu a Pinochet é uma invenção que nos leva à antessala da ditadura chilena (Bolaño). Nas narrativas de Sebald, o acúmulo de histórias, nas quais um narrador de meia idade conta quando jovem conheceu na juventude pessoas mais velhas que, por sua vez, contam a ele histórias de sua própria juventude, quando emigravam/exilavam-se/fugiam da ascensão do totalitarismo nazifascista.

Nesses casos todos, a experiência narrada não é mais direta. A memória pessoal dá lugar à mediação pela distância, pela invenção ficcional, pela elaboração poética. Ainda que não resolvam muita coisa (é só literatura), a poesia e a ficção nos dão formas para não apenas sofrer a experiência, mas também de nos apropriarmos dela.

Colmeia de ossos em ruínas maias

Esse jogo de espelhos, de idas e vindas, desde o momento da experiência ao presente da narração, contribui para que a experiência, (a emigração forçada, as ditaduras, o incêndio), além do trauma e sua necessária cicatrização, possa se tornar ela também fonte de reflexão e conhecimento.

II - Ruínas
No caso de Rodrigo Naranjo, autor de Apartados, o distanciamento ficcional se dá por uma reelaboração narrativa do testemunho que vaga de pequenas prosas poéticas, por novelas breves, relatos de viagens até citações de testemunhos em primeira pessoa com notas de rodapé. O autor esteve em Santos há um mês para lançar o livro, na ocasião apresentado pelo poeta Ademir Demarchi como um livro que suspende as fronteiras entre os gêneros.

Na ocasião, o autor identificou seu interesse pelos “regimes de cautiverio” e busca para suas pesquisas relatos sobre a escravidão nas Américas, os testemunhos de sobreviventes, descrições de viajantes sobre regimes de força ou situações de cativeiro e prisão. Não importa em qual forma, a escrita de Naranjo é rica em alusões, como no texto número 26 de O rotor:

“No caso de que a ditadura viesse da colônia, diríamos que o regime rompeu com o pacto com a rainha, estabelecendo uma transposição da vida da colônia pela qual o matricídio é a regra principal da montagem da máquina ditatorial. A consequência mais imediata seria o estranhamento geral da colônia na qual a rainha ocupa o lugar de uma peça que falta e permite por a máquina ditatorial para funcionar, rainha contra rainha, exercendo a grande rasura dos corpos tramando, aos que substitui o novo conjunto conjuntado. Mas, se pelo contrário, a colônia é o experimento da ditadura, a família já não possui nada de substancial que não esteja posto no movimento da colônia em seu conjunto, em sua possibilidade para decidir e planificar o que antes era familiar. A ditadura experimenta com as possibilidades do rotor formulando um novo domínio colonial, em que ocupa o lugar da rainha que se monumentaliza até chegar a toda ela uma espécie de colônia, cuja origem está colocada no inseto, como as moscas no apiário”.

Naranjo disse que seu texto não conta histórias, “são imagens que formam um mapa geral de uma América Latina desolada”, em "ruínas". Apartados, aclara o autor, “não é um texto identitário chileno”. Não há mais Chile, acrescenta, apenas o “fantasma do Chile”. Não importa o país, mas o destino trágico de nossa região.

Pós Escrito
Não tenho intenção de comparar estética ou estilisticamente os autores (cada um tem seu estilo, charmes, gosto de todos, tenho minhas preferências). Busco algo mais banal: ao invés de comparar (melhor ou pior), apenas identificar procedimentos comuns (no caso, a fabulação dos relatos de testemunho) e como os livros vão conversando entre si.

Dito isso, volto a Bolaño no final da parte de Amalfitano, a segunda do romance 2666. Amalfitano, professor universitário chileno exilado em Barcelona durante a ditadura, vive na década de 90 em Santa Teresa, no México, onde dá aulas na universidade local. A preocupação com  jovem filha devido a uma série de assassinatos de mulheres é a fagulha que o leva à beira de um colapso. Na cena abaixo, ele reflete sobre um livro que trata de uma Confederação Indígena do Chile, escrito por um tal Kilapán, uma figura dúbia e até de incerta existência:

“Na prosa de Lonko Kilapán não cabiam apenas todos os estilos do Chile, mas também todas as tendências políticas, dos conservadores aos comunistas, dos neoliberais até os velhos sobreviventes do MIR. Kilapán era o luxo do castelhano falado e escrito no Chile, em seus fraseados aparecia não apenas o nariz de pergaminho do abade Molina, mas a carnificina de Patricio Lynch, os intermináveis naufrágios de Esmeralda, o deserto de Atacama e as vacas pastando, as bolsas Guggenheim, os políticos socialistas falando bem da política econômica da ditadura militar, as esquinas onde se vendiam empanadas fritas e mote con huesillos para beber, o fantasma do Muro de Berlim que ondulava nas imóveis bandeiras vermelhas, os maus tratos familiares, as putas de bom coração, as casas baratas, o que no Chile chamavam ressentimento e Amalfitano chamava loucura”.

Não são brancas as páginas em que escreveram Bolaño e Sebald, e nas quais seguem escrevendo Naranjo, Tavares, Ariel, entre outros. Elas estão sujas, repletas de loucura e ruínas.

Referências:
Rodrigo Naranjo. Apartados. Tradução Cristiano Moreira e Miguel A. S. Rodriguez. Edição bilíngue. Navegantes / Buenos Aires: Papa Terra / Ediciones La Cebra, 2011.

Roberto Bolaño. Noturno do Chile. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (1ª edição 2000).

Roberto Bolaño. 2666. Barcelona: Anagrama, 2009 (1ª 2004).

Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

W.G. Sebald. Os Emigrantes. Tradução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Record, 2002 (1ª edição 1993).

Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007 (1ª edição 2005).

Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com a dissertação "História e Literatura no Porto de Santos: o romance de identidade portuária Navios Iluminados". Especialista em História e Historiografia. Servidor público de Cubatão, trabalha na Secretaria de Comunicação da prefeitura do município.

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.