quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

"Deus, essa gostosa", por Rafael Campos Rocha,
 uma das tiras mais populares criadas pelo artista.
Por Márcia Costa

Nos últimos anos, sites, jornais, livros e revistas têm feito o papel de galerias e museus, servindo de plataforma de exposição para muitos artistas visuais. Um dos adeptos da portabilidade da arte é Rafael Campos Rocha, que tem ampla participação na chamada ilustração editorial. 

Atualmente, Rafael colabora com a revista Vice e com o jornal Folha de S. Paulo, onde veicula a tira "Ogro". No mesmo jornal publicou, durante um bom tempo, a tira “Deus, essa gostosa” – um dos cartoons mais populares da Folha –, além de produzir diversas capas para a Ilustríssima nos primeiros anos do caderno. Este trabalho para o suplemento dominical lhe rendeu dois prêmios gráficos: o da Society for New Design e o da Europa Graphic Award. 

“Me sinto bem melhor em uma página de papel ou digital do que na parede”. 

Além do meio jornalístico, seu traço também marca presença em livros como o “O Golpe de 64″, parceria com o jornalista Oscar Pilagallo  (Três Estrelas),  em "Deus, essa gostosa" (Quadrinhos na CIA), e no primeiro quadrinho que a Editora Ex Machina, "Conclave", lança em São Paulo no próximo dia 06 de março, na Monkix (Rua Harmonia, 150, Vila Madalena). 

Em 2013, Rafael concedeu uma entrevista para minha pesquisa de doutorado (cujo tema é a presença da imagem artística na capa da Ilustríssima). Falou sobre sobre ilustração, sobre sua participação como ilustrador da Folha, arte e sobre as possibilidades de mistura dos meios tradicionais artísticos com os digitais.

“A internet veio para ajudar o jornalismo e tirar a arte de seu marasmo. A internet veio para destruir a quimera do Autor, a fantasia da Obra de Arte e a tolice da Originalidade Artística”.

Abaixo, alguns trechos da conversa:

Rafael, conte sobre a sua atuação como artista visual.

Hoje em dia praticamente não atuo como artista plástico. Ou pelo menos, não é mais o foco principal de minha atuação. Justamente pelo rumo que o trabalho tomou, transformando-se cada vez mais no deslocamento da sala de exposição para outras formas de meios e visualização. Por exemplo, minhas esculturas (que já eram de difícil visualização), foram dando cada vez mais espaço para peças que você deveria ler – em papel ou na internet – deslocando também os lugares onde isso aconteceria – do museu e da galeria para o site e a revista. Para mim era importante que meu trabalho não parecesse arte, e isso criou um paradoxo, porque nada é mais arte do que uma coisa que deve estar no “círculo da arte” para ser arte. Ou seja, nada é mais artístico, hoje, do que um readymade ou uma proposição interativa.

Minhas últimas individuais – no Paço das Artes em 2010 e no MAMAM de Recife, em 2011, respectivamente, constituíam-se na exibição de meus filmes – que tem sua visualização original no youtube – e meus quadrinhos, que foram concebidos para a leitura na tela do computador e no jornal. Ao ver todas aquelas não-obras funcionando como obras, achei uma coisa fetichizada e mumificada. Uma coisa de “nova vanguarda”, de deslocamento de uma coisa para o campo da arte, de transubstanciação que deve ser das coisas que mais me aborrece na arte contemporânea. Desde então, meu trabalho em arte tem se concentrado em intervenções em revistas de arte, como a Tatuí, e sites, como a revista digital Lugares, do museu Iberê Camargo. Me sinto bem melhor em uma página de papel ou digital do que na parede.

Você é um dos artistas que mais colaborou produzindo capas para o suplemento Ilustríssima, nos primeiros anos do caderno, além de veicular ali "Deus, esse gostosa". Como surgiu o convite para fazer trabalhos para o jornal? O que acha dessa experiência?

Eu contribuía para alguns blogs de arte e cultura, como o blog do Guaciara, e fazia esses trabalhos na esfera da arte. O Paulo Werneck, editor da Ilustríssima, me chamou para criar cartuns para o caderno dele. Comecei fazendo uma série de histórias que tratavam principalmente de cultura e, em 2011, se não me engano, publiquei a primeira história de Deus no jornal. 

As capas foi uma coisa mais casual. Fui chamado para fazer uma capa de última hora, sobre o Fidel, e dei conta do recado. Depois apareceram outras e acabamos ganhando o prêmio Society for New Design, de Nova York, com uma capa e ilustrações para um texto sobre o Carlos Lacerda. Como faço rápido, não recuso trabalho e sou um cara disponível para mudanças e modificações, fui conquistando a confiança dos editores e diagramadores. Pra mim o ilustrador é um cara que resolve o seu problema, e não cria outros.

Devo ter feito mais de 25 capas, porque foram pelo menos uma por mês ao longo de três anos. Como fazia capas, publicava cartuns e fazia ilustrações do miolo eu devia aparecer quase toda semana. Pelo menos duas vezes por mês tinha coisa minha ali. Devo ter feito uns 100 cartuns, 25 capas, e umas 20 ilustrações para o caderno.

Acho que aparecem mais pintores no caderno porque é mais fácil uma pintura dar uma boa capa do que uma foto de instalação ou uma foto de uma intervenção urbana.

Desenho, arte-finalizo e diagramo diretamente no photoshop. Pra mim, um quadrinho edificante, que se propõe a ensinar e elevar a alma do leitor, me desperta verdadeira repulsa moral. Prefiro os maus modos do Gonzales, do Galhardo e do Sieber.

O humor, presença constante no trabalho do artista.
Ao ser veiculado no jornal seu trabalho deixa de ser arte? Qual a diferença da arte que você produz para o jornal em relação a outras produções não encomendadas?

Eu faço para ser veiculado. E acho irrelevante se a coisa é arte ou não. Quando Di Cavalcanti largou o seu excelente trabalho de ilustração e passou a fazer arte, realizou aquelas pinturas horrorosas que conhecemos. O cartunista Laerte, sem fazer arte, alcança resultados estéticos superiores ao de bastiões da arte elevada nacional como Guimarães Rosa. Angeli é melhor que Oiticica e por aí vai. Minhas ilustrações não nasceram para ser arte, assim como meus filmes e cartuns. Eu faço coisas que podem ser expostas como arte ou não. Aliás, nenhum artista sério se interessa pela questão de se o seu trabalho é arte ou não.


O que é ilustração pra você? A ilustração pode se configurar como uma obra de arte? Quando isso ocorre?  

A ilustração é um trabalho, como uma exposição, um livro, uma pintura ou um texto crítico, atividade com a qual trabalhei muitos anos. Tenho que entregar para o meu cliente. Acho que vira arte quando é tratada como tal, assim como nas artes visuais. E ser tratado como arte não agrega nenhum valor ao trabalho. Renoir é arte e é aborrecidíssimo, aquela coisa lacrimosa e piegas do impressionismo decadente. Saramago é arte, e é aquela bobagem edificante que todos conhecem. Já os textos do Douglas Ceconello, do site Impedimento, não são arte e me causam uma emoção estética que nenhuma pintura do modernismo brasileiro chegou perto de me causar. 

Uma boa ilustração pode causar um efeito em quem vê que uma má pintura não consegue. Assim como uma boa foto, uma boa história em quadrinhos e uma boa piada viral de internet. Vários dos meus artistas prediletos não são artistas, e nem querem ser arte. Querer fazer arte é o pior jeito de se fazer arte. É o que fazem as pessoas que querem fazer Literatura, Pintura e outras pequenezas com maiúscula. 

É um erro muito comum as pessoas acharem que o rótulo arte agrega valor às coisas. Agrega valor monetário, isso sim. É uma coisa muito eurocêntrica e colonizada essa obsessão com o Valor da Arte. Tenho conseguido tocar mais as pessoas com minhas ilustrações e meus quadrinhos do que tinha feito com meu trabalho como artista plástico. Inclusive meus colegas artistas acham que meu melhor trabalho é minha ilustração e meus quadrinhos.
Capa da Ilustríssima de 20 de novembro de 2011
Uma das capas polêmicas que você produziu para a Ilustríssima foi sobre um texto de Tales A. M. Ab´Sáber que aborda as relações entre a arte contemporânea e suas vinculações com o mercado. Como foi que pensou essa ilustração?

Ah, a capa do Ab´Sáber foi assim: li o texto dele e detestei. Ele faz parte de uma intelectualidade adorniana, que faz a crítica da cultura popular, ou, pelo menos, da cultura popular da qual ela não participa. Só que o Adorno fez essa crítica no contexto do nazismo e do uso nazista da cultura popular.  Enfim, o que o Ab´ Sáber fez foi esnobar a arte contemporânea de raiz pop, como sendo um realismo capitalista, que era, por sinal, o movimento criado, de brincadeira, por alguns alemães orientais como... Sigmar Polke. Enfim, usei as cores dos quadrinhos dos anos 60, que era uma época de guerra ideológica forte nos gibis. E o design também. As cores são muito maoístas, e lembram aquela capa de um livro muito engraçado do Cornelius Cardew chamado "Stockhauser Arauto do Capitalismo". Coloquei ele de boina maoísta com a intenção de ofendê-lo, mas não deu certo. Tudo o que intelectual quer é sair no jornal. De resto, reforcei o argumento dele, fazendo o Mathew Barney comendo uma criancinha, a Cindy Shermann de campesina e o Jeff Konns em uma fábrica. Depois fiz no miolo o Ab Saber dando tiro em todas as criações do pop, como tubarões, demônios etc. Note que eu fiz o título da expo sangrento, como se a expo fosse um crime horrível contra a arte, quando na verdade é uma ótima exposição. Enfim, da escolha das cores ao desenho, a ideia era ridicularizar o argumento do Ab Saber, mas não consegui, excetuando para as pessoas que conhecem tanto arte pop quanto arte contemporânea.

Sobre o processo de midiatização da arte, a mistura de linguagens, quais os conflitos que marcam essa relação (mercado x arte, perfil editorial do veículo x autonomia do artista, por ex.)?

Acho que os novos meios modificaram a forma de vermos e produzirmos inclusive nos antigos meios. Pelo menos no caso dos bons artistas. A fotografia modificou a pintura do século XIX, assim como os catálogos coloridos de roupas, colecionados avidamente por Manet. Sem falar na caricatura jornalística, da qual Monet era fã. Por sinal, Monet não entrava no Louvre nem amarrado e achava o Ingres um chato. Baudelaire, que além de ser o maior poeta, era o maior crítico do século XIX, percebeu isso com a inteligência que caracterizava tudo o que fazia: que o grande artista deveria ser um homem de seu tempo. Frase cunhada por seu amigo Manet. A impressão off-set modificou a pintura de meados do século passado, mudando o estatuto da imagem, que não era mais especial e única. Para Johns, o expressionismo só poderia ser visto pela lente de sua reprodução. Um pintor hoje que ignora a internet e o fenômeno do catálogo de arte é um ingênuo e um tolo, conseguindo no máximo realizar uma pintura anódina como a de Sean Scully. Evidentemente, o artista não precisa usar a retícula, a internet, fotos ou o que seja, mas ele deve ter consciência de seu tempo.

Os quadrinhos americanos do começo do século passado são a forma de arte mais avançada de sua época, e os melhores artistas americanos de então não eram pintores ou escultores, eram quadrinistas como Opper, Herriman, MacManus e Clif Sterret. Picasso viu isso e modificou o seu trabalho. Para mim, hoje em dia, as grandes criações artísticas são as séries televisivas. Pasolini e Glauber tinham previsto essa fase, anos atrás. As séries americanas, como “Roma”, ou franquias como “Piratas do Caribe” são as maiores obras-primas que o Ocidente logrou conceber esse século. Sem esquecer os desenhos animados geniais como “Bob Esponja”, “Hora de Aventura” e tantos outros.

Com relação à autonomia do artista, é uma lenda. É a forma de mitificar o artista para chancelar seu papel social de corifeu (principal figura do coro) e representante da classe social que o gerou, protege e é edificada por ele, a burguesia. A autonomia artística é uma lenda burguesa, como a autonomia da jurisprudência burguesa e a “liberdade” da imprensa burguesa. Lendas e mitos.

A arte nasce do capitalismo. Quando terminar o capitalismo – e um dia vai acabar, como acabou o feudalismo e o Império Romano – a arte, com seus autores, vai acabar. Os humanos vão continuar se expressando, mas o primado do produto artístico e de seus especialistas vai ser substituído por outra coisa, menos ligada ao produto e à propaganda da “civilização”, esse outro pretexto para o assassínio em massa e o butim. O “atrito” entre “liberdade artística” e uma suposta repressão do mercado é outra lenda, como podemos aferir pelos Beatles, por Picasso, por Matisse e tantos outros. É o mercado que faz a arte, não o contrário. Existiam mais pintores do que padeiros nas capitais holandesas do século XVII porque as pessoas tinham dinheiro e não tinham tantas coisas para consumir. A arte nasce do mercado de arte, assim como os museus nascem do espólio das nações conquistadas.

Qual é a diferença entre a ilustração produzida para o jornal impresso no século passado e a ilustração contemporânea, pensando agora numa sociedade cada vez mais complexa, onde o leitor é produtor, capaz de interagir por meio de suportes como a internet etc?

A internet veio para salvar o jornalismo e a arte de seu marasmo. A internet veio para destruir a quimera do Autor, a fantasia da Obra de Arte e a tolice da Originalidade Artística. Também serve para destituir o Patrimônio da Informação, restrito à classe dominante. Com a internet, o jornal perde o monopólio, se reinventa e melhora. A mesma coisa com a Arte.

De que forma a linguagem da arte pode contribuir para o jornalismo?

Qualquer linguagem contribui para outra. O jornalismo ajudou a construir o melhor da arte do século passado. Assim como a televisão contribuiu enormemente para o cinema de Godard, o grande nome dessa arte. A arte contribui menos para o jornalismo do que o contrário. Pode ajudar a vender jornais, se muito. Espero que ajude, pelo menos. É o meu objetivo quando faço uma capa.

Para conhecer mais sobre o artista:
http://rafaelcamposrocha.blogspot.com.br

1 comentários:

  1. Nelson Wendel Pirotta1 de março de 2015 às 11:18

    Parabéns "Pausa" pelo enfoque de arte com humor! Citando Tom Wolfe ( A Palavra Pintada - L&M. 1987 -Porto Alegre - Pg.10 ):-
    " Com o passar do tempo, (o termo) literário passou a definir a pintura realista em geral. A ideia era que metade da força da pintura realista não advém do artista mas dos sentimentos que o observador transporta para a tela, como uma bagagem mental. De acordo com esta teoria, a apreciação do público que frequenta museus, digamos, por " Le Semeur" ( O Semeador ) de Jean François Millet, pouco tem a ver com o talento de Millet, mas tem tudo a ver com as ideias sentimentais das pessoas sobre "o robusto fazendeiro". Elas inventam uma historinha sobre o personagem." Portanto, concordo que, para o jornalismo, a imagem precisa necessariamente da palavra, dai a força das tiras.
    Nelson Wendel Pirotta

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