domingo, 22 de maio de 2016

Uma foto de Saramago quando jovem (Sem autoria identificada. Fonte: www.josesaramago.org)

Por Jean Pierre Chauvin


Infelizmente, não topei com Saramago nas vezes em que ele esteve por aqui. Soubesse a relevância que ele assumiria, norte e arte, teria feito um esforço supremo para colher mil autógrafos, dar-lhe uma penca de abraços e dizer que seus livros consolidaram novas formas de conceber pedaços de visão de mundo.

Quando o escritor faleceu, em 2010, alunos e colegas de ofício enviaram-me pêsames, o que me deixou metade alegre (a lembrança), metade orgulhoso (o vínculo). Senti-me órfão e lamentei que não houvesse novos romances a ler.

Eis que ano passado fui a Portugal. Sediado em Braga, no terceiro dia consegui fugir para as ladeiras e livrarias do Porto. Na manhã seguinte, palmilhei Lisboa. Percorri a margem urbanizada do Tejo, na mente o mapa aproximado da estação Apolônia até a Fundação José Saramago.

Lá estava o homem, em palavra e imagem. Degustei os degraus em mármore, feitos com inscrições emprestadas de seus narradores; consultei agendas, rascunhos, manuscritos; ouvi-o falar em (vídeos de) entrevistas e eventos. Nas premiações, discursava de modo consciente, firme, preciso a sujeitos tidos por poderosos.

José Saramago casou, como raros homens, o artista ao político, o artifício à potência das palavras. Lírico, épico, sensível e aguerrido, ele entrou para a lista dos escritores portugueses de minha predileção (Camões, Vieira, Eça, Quental, Pessoa) e permitiu rever a concepção que eu fazia da literatura: entretenimento, convenção, saber e ofício.

Não havia experimentado a sensação de devorar ansiosamente, agachado ou em pé, as linhas iniciais de um livro, antes mesmo de passar pelo caixa. Nunca um escritor vivo havia me feito cogitar uma jornada às Ilhas Canárias, para ouvir de perto a versão corroborada de seus narradores e personagens.

Seria uma obviedade sugerir que o planeta carece de gente coerente, feito Blimunda e Sete Sóis; o intrépido funcionário José; o subversivo revisor Raimundo; a solidária Mulher do Médico.

Dia desses, boto mais coragem em marcha e preencho um romance. O maior receio é que ele soasse, quando muito, emulação de Saramago.  Enquanto o fenômeno não sucede, volto a seus livros, razão para encantamentos.
Claro esteja: sempre haverá possibilidade de reivindicar uma ilha desconhecida e movente, para além da moral inflexível, o dogma imutável e o senso comum – repetido orgulhosa e incessantemente entre alguns de nós.

Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira na ECA, USP e autor de O poder pelo avesso na literatura brasileira (2013). Pesquisa gêneros textuais produzidos entre os séculos XVI e XIX.
   


4 comentários:

  1. Legal, Chauvin. Nos mantenha a par das atualizações. Abraço.

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  2. De fato Saramago escreveu e inscreveu seu nome não apenas entre os grandes da Literatura Potuguesa, mas Mundial. Leitura não apenas recomendada, necessária.

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  3. Uma vez tive um caiaque que pretensiosamente chamava de barco. Dei-lhe até um nome, em letras bem grandes, que tomavam em branco sua lateral laranja: Ilha desconhecida. Acho que de certo modo as homenagens dizem, às vezes, mais do que resenhas formais. Esse texto, pelo que percebo, é uma linda homenagem, a partir de uma intensa vivência com a obra de Saramago. Que confortável esse texto, carinhoso mesmo. Eu também tinha vontade de ter encontrado com ele e lhe dado um abraço de obrigado.

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  4. Muito bom, Jean. Reminiscências.

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