Por Adelto Gonçalves
(*)
I
A britânica Hermione Lee (1948), professora de Literatura Inglesa na
Universidade de Oxford e integrante da British
Academy e da Royal Society of Literature,
em seu livro Biography: a very short introduction
(Oxford University, 2009, p. 18), diz que não há regras para a biografia, já
que esta é uma forma incerta, contraditória e variável. Para ela, “talvez a
única regra que se mantém é que não existe essa coisa que se chama biografia
definitiva”.
Por aqui, não aceitamos com facilidade essa observação talvez porque não
sejamos tão rigorosos como os britânicos e usamos a definição “biografia
definitiva” ou “biografia completa” mais no sentido hiperbólico, para dar ao
leitor a sensação de que, dificilmente, alguém poderá ir tão longe numa
pesquisa sobre a vida e a obra de um autor. Mas, obviamente, há sempre a
possibilidade de que um investigador venha a superar outro, encontrando
documentação e vestígios de um passado até então encoberto.
No caso do poeta Fernando Pessoa (1888-1935), há nas bibliotecas algumas
grandes biografias, começando pela pioneira que João Gaspar Simões (1903-1987)
publicou em 1950, Vida e Obra de Fernando Pessoa — História duma Geração,
Vol. I: Infância e adolescência; Vol.
II: Maturidade e morte, passando
pelos estudos dedicados ao poeta pelo investigador norte-americano radicado em Portugal Richard Zenith
(1956), até a mais recente feita pelo advogado pernambucano José Paulo
Cavalcanti Filho (1948), Fernando Pessoa:
uma quase autobiografia (Rio de Janeiro, Editora Record, 2011), que tem sido
muito contestada por outros estudiosos pessoanos.
Entre essas grandes biografias, não
se pode deixar de incluir La vida plural
de Fernando Pessoa, do crítico e poeta espanhol Ángel Crespo (1926-1995),
que veio à luz em 1988 pela Editorial Seix Barral, de Barcelona, com tradução
para o português de José Viale Moutinho que foi publicada em 1990 pela Bertrand
Editora. Na Itália, em 1997, saiu uma primeira edição italiana deste livro,
traduzido pelo crítico Brunello Natale De Cusatis (1950) e publicado por
Antonio Pellicani Editore, de Roma. Em
setembro de 2014, saiu pela Edizioni Bietti, de Milão, uma nova tradução,
editada e anotada também por De Cusatis.
II
Trata-se de uma pesquisa
aprofundada, que se baseia, especialmente a propósito da vida pessoal do poeta,
não só na biografia-gênese de João Gaspar Simões como em: Fernando Pessoa, notas a uma biografia
romanceada, de Eduardo Freitas da Costa (Lisboa, Guimarães, 1951); Fernando
Pessoa (Lisboa, Arcádia, 1960) e Fernando Pessoa, vida, personalidade e gênio
(Lisboa, Arcádia, 1981), ambos de António
Quadros; Fernando
Pessoa na África do Sul, de Alexandrino Severino (Lisboa, Dom Quixote,
1983); Os dois exílios, de H. D.
Jennings (Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1984); e
Fernando Pessoa, empregado de escritório, de João
Rui de Sousa (Lisboa, Sitese, 1985);
além de estudos críticos e cartas pessoais cujas citações ocupam sete páginas
na seção de nota bibliográfica.
Dessa maneira, todos os grandes (e
conhecidos) episódios da vida de Pessoa estão nesta biografia, como a sua
infância em Lisboa e os anos na África do Sul (1896-1905),
tão bem levantados pelo scholar português
Alexandrino Severino (1931-1993), o retorno a Lisboa e sua participação no
grupo da revista Orpheu, o suicídio
do poeta-irmão Mario de Sá-Carneiro
(1890-1916), a gênese e a profusão dos heterônimos, a revista Presença, a defesa da maçonaria, os
poemas em inglês, o Livro do Desassossego,
de Bernardo Soares, os escritos esotéricos e outros.
Como observa De Cusatis na
apresentação que escreveu para a primeira edição italiana deste livro, a
biografia preparada por João Gaspar Simões, publicada apenas 15 anos depois da morte do poeta, ainda que
monumental (com mais de 700 páginas), carecia de muita pesquisa, até porque, em
grande parte, a documentação referente a Pessoa não estava disponível.
Baseado numa interpretação freudiana da personalidade de Pessoa, o
trabalho de Gaspar Simões foi acusado injustamente por Eduardo Freitas da Costa, primo em segundo grau de Pessoa, de
constituir uma “biografia romanceada” porque fundamentada em “lendas” e
“mitos”. Como sempre teve oportunidade de observar
De Cusatis – desta vez em palestra proferida
durante a Feira do Livro de Porto Alegre, no começo de novembro de 2014 –, esta de Freitas da
Costa teria sido uma acusação muito pesada, recusada firmemente por Gaspar
Simões por ocasião da publicação
da segunda edição da
biografia, em 1971. Para
De Cusatis, a obra de Gaspar Simões é ainda um texto fundamental e
imprescindível a quem tenta se aventurar no universo pessoano.
III
Escrito 38 anos depois de publicado o trabalho de Gaspar Simões, o texto de Crespo, além de rigorosamente fundamentado em documentação e, em boa parte, no arquivo da família de Pessoa sob guarda a Biblioteca Nacional de Lisboa desde 1979, é de fácil leitura, apesar da complexidade do personagem biografado, como assinala De Cusatis. É de se destacar, no entanto, que Crespo não escreveu uma biografia comercial, de olho em grande público, como certamente o faria se fosse um biógrafo brasileiro, quase sempre pressionado pela conhecida ganância dos editores locais.
La vida
plural de Fernando Pessoa – como observou De Cusatis sempre por ocasião de sua
palestra proferida durante a Feira do Livro de Porto Alegre deste ano – “talvez seja, ainda hoje, a biografia
pessoana que mais se afasta da maestra (ou seja, da biografia escrita por Gaspar Simões),
não só porque Crespo fez de modo a afastar de si a mínima suspeita de
extemporaneidade interpretativa, fugindo à
chamada historiografia romântica (e portanto, no caso especifico, às “lendas” e aos
“mitos” de que falara Freitas da Costa),
mas também porque se apoiou em alguns importantes contributos, documentais e
críticos, que tinham aparecido de recente”.
Para De Cusatis, tal conduta permitiu a Crespo optar por “uma nova impostação, que apontava a indagar, numa visão insólita, quer alguns dos aspectos mais controversos da vida e da obra de Pessoa, como os que se relacionam com o seu esoterismo e a sua (presumível) homossexualidade, quer a traçar dele – de qualquer forma desmistificando – um percurso vital mais real, mais humano, analisado à luz tanto dos seus medos, indecisões e fraquezas como das suas frequentações, de pessoas e ambientes, sobretudo aquele referente ao seu trabalho”.
Para De Cusatis, tal conduta permitiu a Crespo optar por “uma nova impostação, que apontava a indagar, numa visão insólita, quer alguns dos aspectos mais controversos da vida e da obra de Pessoa, como os que se relacionam com o seu esoterismo e a sua (presumível) homossexualidade, quer a traçar dele – de qualquer forma desmistificando – um percurso vital mais real, mais humano, analisado à luz tanto dos seus medos, indecisões e fraquezas como das suas frequentações, de pessoas e ambientes, sobretudo aquele referente ao seu trabalho”.
Escrita há mais de um quarto de século, obviamente, a
biografia feita por Crespo, segundo De Cusatis, necessitava de uma atualização. “Quando falo de atualização, refiro-me a algumas distrações e a várias imprecisões
em que caiu Ángel Crespo: mas
imprecisões que no seu caso, contrariamente a outros biógrafos e críticos
pessoanos, antes e depois dele, são quase todas justificadas, porque devidas ao
seu desconhecimento de inéditos importantes do biografado, vindos à luz só anos
depois da publicação da sua biografia pessoana e das cartas de Ofélia Queiroz
(1900-1991) a Fernando Pessoa, publicadas em 1996, portanto, à distância de
oito anos da publicação de La vida
plural de Fernando Pessoa e um ano depois da morte do seu autor”,
diz.
Em outras palavras:
escrita e publicada em 1988, ou seja, há 26 anos e, portanto, “desatualizada” – considerando a
natureza in progress quer da obra de Fernando Pessoa quer das notícias sobre a vida dele –,
a biografia elaborada por Crespo teve de ser revista e rescrita em várias
partes por De Cusatis. Para fazê-lo, sem deturpar ou “mexer” no texto original
de Crespo, tanto quanto isso seja possível em se tratando de uma tradução, De
Cusatis teve de produzir para esta segunda edição em italiano um vastíssimo corpus completamente seu, ou seja: 662 notas postas no fim de cada um dos 22
capítulos, duas apresentações (a da primeira edição e a da segunda) e uma nova
bibliografia com mais de 50 títulos e atualizada a 31
de dezembro de 2013, além de um índice por nomes. No total, isso
equivale a 200 páginas, mais ou menos, do volume todo. Ou seja, é praticamente
um livro dentro de outro livro.
Por todo esse trabalho de dimensões ciclópicas de
seu tradutor e editor, esta reedição italiana de La vida plural de Fernando Pessoa, de Ángel Crespo, sem sombra
de dúvida, representa atualmente a biografia pessoana mais completa e
atualizada já posta em circulação.
IV
Angel Crespo y Perez de Madrid foi
professor da Universidade de Porto Rico e atuou como conferencista na América e
na Europa. Tradutor em língua espanhola de Fernando Pessoa, Dante Alighieri
(1265-1321) e Petrarca (1304-1374), participou da fundação de várias revistas
literárias, inclusive a Revista de
Cultura Brasileña, patrocinada pela Embaixada brasileira em Madri, na qual
contou com o apoio do poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Ensaísta, destacou-se também como poeta, especialmente da chamada Geração
de 50 da poesia espanhola. Traduziu também poetas brasileiros como João Cabral
de Melo Neto e Manuel Bandeira (1886-1968) e portugueses como Eugénio de Andrade
(1923-2005) e António Osório (1933). Muitas de suas traduções estão reunidas em
Antología de la nueva poesía portuguesa
(Madri, Rialp, 1961). Traduziu ainda os romances Grande sertão: veredas (1967), do mineiro João Guimarães Rosa
(1908-1967), e O que diz Molero
(1977), do lisboeta Dinis Machado (1930-2008).
Brunello
Natale De Cusatis, professor de Literaturas Portuguesa e Brasileira e de Língua
Portuguesa da Universidade de Perugia, é articulista com trabalhos publicados
em jornais e revistas italianos e no exterior. Estudioso de Fernando Pessoa,
publicou em Portugal o ensaio Esoterismo,
mitogenia e realismo político em Fernando Pessoa (Porto, Caixotim Edições,
2005). Organizou o livro Studi su Fernando Pessoa (Perugia, Edizioni
dell'Urogallo, 2010), que reúne onze ensaios
de especialistas no poeta português, inclusive deste articulista.
______________________________
______________________________
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
1981), Fernando Pessoa: a voz de Deus
(Santos, Universidade Santa Cecília, 1997), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira
de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
0 comentários:
Postar um comentário
Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.