Um conto, por Luiz A. G.
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[Imagem de Cláudio Tozzi]
João
combinou um encontro com o amigo no bar da esquina, numa quarta-feira, para ver
o jogo Santos versus Atlético Mineiro. É um boteco com mesas na calçada; nessas
noites de chuva e frio há uma cobertura de plástico, uma espécie de tenda, onde
ficam os fregueses. O dono colocou no balcão duas televisões, ao menos uma
delas visível de qualquer mesa. Ali ficaram, aguardando o início do espetáculo,
abrigados do inverno e da garoa.
Não via o
companheiro havia algum tempo. Começaram com as trivialidades, filhos,
famílias, governo, futebol. Esperava uma oportunidade para contar-lhe uma
experiência inusitada, um estranho fato que tinha lhe sucedido, mas não achava
a brecha. Marinho é um pouco mais novo, também militante de esquerda. Sempre
estiveram juntos nas campanhas políticas e nos bares da vida onde havia ocasião
de “trocar uma ideia” e arranjar soluções infalíveis para os problemas do país.
João
pediu um Campari. O garçom foi até o balcão, entrou na copa e voltou com a
notícia: "Não tem". "Como, não tem Campari?!", respondeu
indignado, pronto para levantar-se.
Logo
mudou de ideia, o jogo ia começar, queria ver a partida desde o pontapé
inicial. Pediu um whisky sem gelo e uma garrafa d'água. Gostava de alternar um
gole de cada, a sensação quente do álcool queimando a garganta, o frescor da
água dando o contraste. O amigo pediu chope e um sanduíche de filé de frango.
Vai e
volta o garçom: "Não tem frango".
Nova
indignação, a bola já rolando, não iam sair dali àquela hora, de jeito algum. O
mais novo atacou: "Tem ferrinho?" "Que ferrinho?",
respondeu o homem. "Aquele ferrinho de baixar a porta". A piada
poderia causar confusão, mas só provocou um sorriso meio sem graça nos
presentes. “Os turistas vieram em massa no final de semana e acabaram tudo”,
desculpou-se o garçom. "Deixa pra lá, vai um sanduíche de calabresa, mas corta
a lingüiça em rodelas, põe cebola e frita com queijo", tentou o mais
velho, conciliador. “Pra mim também”, emendou o outro. O pedido era bastante
detalhado para aquele lugar, a encomenda demorou até meados do primeiro tempo,
mas veio correta.
Logo de
cara o Atlético enfiou dois gols no time da casa. João comunicou à namorada,
falando baixinho pelo celular, a notícia da derrota antecipada; a paixão é
assim, qualquer coisa é pretexto para o sussurro. "A vida é como o
futebol", filosofou de repente o Marinho, explicando: "Tudo pode
acontecer de uma hora para outra, o Santos pode empatar, mesmo que não esteja
atuando melhor. É o único jogo que pode ser decidido em uns poucos ataques, ao
contrário dos outros, onde quem ataca mais sempre ganha".
O amigo
entendeu que ele se referia ao vôlei e ao basquete, talvez nem concordasse com
essas considerações, a maior experiência de vida o ensinara que as coisas não
cabem em tais esquemas simplistas, mas não retrucou. Pensando bem, até que
ideia era boa. De fato, tudo pode acontecer sem que se espere.
Estava
ali para contar algumas experiências recentes, queria falar dela, da nova
mulher, e de como havia sentido, pela primeira vez em muitos anos,
possivelmente pela primeira vez em sua existência, a proximidade de Deus. Não
achava jeito - como falar dessas coisas para um comunista?
Começou a
alinhavar a história, ela aconteceu como um gol no único ataque do time, o
drible genial, o lance que decide a partida. Na metade do segundo tempo, chegou
a pensar, afinal já passava dos 60, mas omitiu esse pedaço, evitava pensar
nisso. Não era tão metida a intelectual como eles, muitas vezes as metáforas
cruéis que usavam para ironizar a vida feriam sua sensibilidade. Cultivava mais
a estética, por força de ser ligada à arte, e a percepção interna, por sua
natureza.
"É
muito rico conviver com uma pessoa que se orienta por outros sentidos",
explicou. "É de esquerda?" perguntou o outro, meio desconfiado.
"Votou na esquerda nas últimas eleições". A resposta pareceu
aquietá-lo, mas esse pingue-pongue acabou chutando o tema transcendental para
escanteio.
Gol do
Santos, urros no bar, "Eu não disse?", ouviu João ao seu lado, como
se a jogada justificasse a postulação filosófica posta na mesa, junto ao
sanduíche. Em seguida veio o empate. Mais gritos, mais chopes e cervejas, o
ambiente não parecia mesmo propício aos assuntos sentimentais.
Telefonou
de novo, ouviu o que queria: "Queria estar aí com você". Ele também
gostaria que isso fosse possível, mas ela trabalharia muito cedo no dia
seguinte, precisava dormir, é bem verdade que ele não dava sossego, é bem
verdade que ela parecia não se importar. Agora já mandava às favas a conta do
celular. Conversaram mais um pouco, disse-lhe onde estava, falou mais baixo ainda
algumas palavras meladas, sob os olhares gozadores do amigo, que deduziu o
clima que rolava, pelo tom assoprado do papo.
Desligou
o aparelho e seguiu com os assuntos triviais, entremeados de comentários sobre
o jogo, como se nada tivesse acontecido.
Foi uma
coisa tão simples, seria fácil contar o caso completo, acontecera havia um mês.
Ele estava na casa dela, já pronto para voltar ao seu apartamento, ali perto do
boteco, mas o time da casa marcava, agora, mais um gol, 3x2 para nós, cantos de
vitória aos berros, brindes, balbúrdia, interrompendo o ensaio do discurso.
Bem,
estava na porta da casa da namorada, a instantes de partir, beijos e abraços,
ela disse: "Vai com Deus".
Ele
respondeu: "Fica com Deus".
Por um
instante ficou paralisado, perplexo, aquela expressão era estranha ao seu
costume, havia se formado de maneira autônoma, teve a sensação de alguém ter
falado por sua boca, como se estivesse possuído. No entanto a voz saiu
convicta, era mesmo sua, há muito não sentia palavras tão verdadeiras, rogou que
ela ficasse com Ele, talvez o contrário fosse mais apropriado, Ele com ela.
Achou
mesmo que quis dizer isso, por vezes a ordem dos fatores altera o produto.
Enquanto recordava toda a cena e procurava um modo de contá-la ao amigo, e já
não considerava essa tarefa tão simples, o Atlético empatou o jogo.
Xingamentos, socos nas mesas, torcedores se levantavam e abriam os braços,
decepcionados. "Eu não disse?" Era o Marinho, tentando mais uma vez
confirmar sua tese sobre a vida. João ficou meio sem jeito, também torcia para
o time da cidade, formou-se um ambiente ainda mais complicado para se falar de
Deus.
Perguntou
a si mesmo se deveria estar ali, numa noite fria e chuviscosa, naquela
atmosfera profana e ensurdecedora, a voz do locutor misturada à gritaria dos
fregueses, alguns narizes fungando como contraponto, o sereno invadia a tenda
de plástico.
"Vamos
comer batata frita?", perguntou o mais novo. João olhou para o cronômetro
da tela da TV, ainda faltavam uns 15 minutos para acabar o jogo. Concordou com
o pedido, apesar da previsível demora do cozinheiro. Ficou com vontade de
convidar a namorada para dividir o prato com eles, virtualmente, é claro, mas
não ligou de novo, agora já deveria estar dormindo.
O
resultado ficou no empate, os atletas pareciam conformados, trocavam a bola
burocraticamente, enquanto o prato de batatas e o jogo eram esvaziados. Final
do espetáculo, todo mundo se levantando e pedindo a conta ao mesmo tempo, o
Marinho quis pagar: "Da última vez foi você", e encerrou o assunto.
Esperaram o troco, o tempo exato para falar as coisas que foram esquecidas
durante a partida, como se fosse um tempo extra, palavras de fim de festa, a
saideira. João queria o desempate, mas ficou devendo o gol, não falou de seu
encontro com Ele. Deixou escapar a jogada genial. Talvez consiga de uma próxima
vez.
Andam
juntos um pedaço do caminho de volta, debaixo da garoa. O burburinho do bar vai
se distanciando. Pouco falam, separam-se duas quadras adiante com o aperto de
mão, os rumos de casa se bifurcam. Sozinho, o homem retoma o contato com Ele e
com ela, cada um presente à sua maneira. As ruas estão escuras, o caminho pode
ser perigoso, a umidade gruda a camisa no corpo.
Chega em
casa com um leve desconforto. Deita-se e fica rolando na cama. Com quantos
tempos, afinal, se faz um jogo, pergunta-lhe a insônia. As coisas devem ter um
fim, sopra-lhe um bom senso antigo, mas a noite dá sinal de ser longa. Depois
de muitos anos faz uma prece, pedindo ao Juiz para soar o apito final. O final
dos tempos, murmura e surpreende-se, antes de ser assaltado por outros sonhos.
Luiz A.G. Cancello é psicólogo formado pela Universidade Católica de Campinas. Foi psicólogo do elenco profissional do Santos Futebol Clube. Exerce a profissão de psicoterapeuta em consultório particular desde 1972. É também músico profissional. Publicou, entre outros os livros de contos Dias de cão (Realejo, 2007), A carne e o sonho (Bom Texto, 2000), Dia-a-dia: fragmentos (Massao Ohno, 1995). Mais textos seus podem ser encontrado no seu site: http://www.luizcancello.psc.br/ .
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