Fotografia de Marcelo Rayel
Por Marcelo Rayel
Olá!
Aqui estou,
sacudo-me da tua poeira centurial, essa divisão canhestra em doze, depois em
trinta, com dobras em sete, que se arrastam na nossa miséria pessoal, coletiva,
insistente. Pouco lustroso, diria, não enxergo qualquer nesga de esperança por bonança,
o vindouro dos bons dias, a fé nessa nossa cegueira de sentir que o melhor está
por vir. Sim, estou preso nessas linhas, nesse derrame feito sangria que, juro,
não quis em momento algum. Resultante desse alheio que até fui comigo mesmo.
Sacudo e jogo fora essas hostes demoníacas que flagelam meu corpo, desatinam em
sofrimento. Não mais! Em nome de nada faria outra vez. Não quero mais perseguir
esses conselhos. Desejo, somente, me especializar em vazio, aprimorar o quanto
aprendi do desconhecimento.
Olá!
Olá, Queen’s
Park! Jurei que não fizesse tanto frio naquela manhã. E ainda me meti à
biscoito-se-sebo de te ver em bermuda e camisa-de-manga. Só faltaram os
chinelos. Que frio! Achei que estava até um pouco mais tarde em Loftus Road,
foi quando descobri que o sol, no verão, se ergue às cinco da manhã. Que
cabeça, a minha! Não era à toa, chegando a tarde, logo depois do almoço, não
conseguia levantar da cama do hotel, aliás, macia, aconchegante, abrangente.
Quase não fui à Biblioteca nesse dia. Por pouco não peguei minha ale no Euston
Fliers, sentei-me no meio-fio, a devidamente sorver minha melancolia diante
daquela derrota minha de cinco andares, de ser artista em terra de assassino.
Mas, valeu! Queria muito ter te conhecido! Foi muito bom! Todo aquele amplo
espectro-espaço verde, com os residenciais permeando tuas árvores, teus
arbustos. A respiração do ar gélido de tua manhã. Os trabalhadores se
acotovelando no pequeno café ao lado da estação. Quem bom, Queen’s Park! Que
bom!
Olá!
Olá, Notting
Hill Gate! Tuas antigas casas geminadas que tanto incitam tuas novas gerações
de todos os cantos do mundo a se estabelecerem ali, do jeito que são! Das cores
de tuas paredes, do silêncio de tuas igrejas, das casas sobre os elevados, de
toda sorte de quinquilharias que mais pareciam aos meus olhos as mesmas
miçangas que enfeitiçavam os silvícolas de um novo mundo posteriormente
explorado e pisoteado em meio ao mais contínuo genocídio de que se tem notícia.
Sim, Notting Hill, acho que morri quando vi tuas flores penduradas em postes de
luz, que ficou um pedaço da minha carne nos canteiros ornados por pétalas, o
que se eventualmente chamaria de poesia
(ou certamente seria!). Juro que não foi culpa minha, meu corpo ainda
funcionava nessa época. Sei, bem sei disso: nunca mijei tanto em Londres! É
porque meu corpo não transpirava, nunca passei por tanto aperreio. Quase entrei
num cinema fechado diante de tamanho desespero. Foi graças o pleno exercício da
bexiga que conheci aquele shopping mais à frente. Estive dentro de ti. Foste
meu útero. Só queria muito te agradecer.
Olá!
Olá, Shepherd's Bush Green! Terra
das Sufragetes, hein?! Mas não tens o
ar do avanço que só o feminino é capaz de nos proporcionar. Tens cara de cidade
do interior, com a sua praça, os comerciantes locais, a venda, a troca. Acho
bom você ficar fora dos roteiros! Tenho ciúmes! Não quero ver em suas ruas essa
gente imbecil que pensa (ou acha) que o gosto duvidoso de seus passeios
medíocres, de seu turismo entediante, é um grande assunto para se perfazerem de
atuais, modernos, materialismo histórico babaca da engenharia, que tudo
reduz à boçalidade da coisificação da alma. Não sabem o que é materialismo, não sabem o que é histórico, não sabem o que é racionalismo, não sabem o que é instrumental, aliás, sabem de quê, essa
gente?! Shepherd's Bush Green, não deixe essa gente pisar aí! Mande-os(as) para
South Africa Avenue e deixe os ultras do Rangers cuidarem desse assunto! Foi
nesse teu ventre, Shepherd's Bush Green, que se gestou o direito que toda mulher tem de participar da política, pelo voto, pelo posto, participar da vida! A
vida é tua política, e elas se misturam! Seja bem-vindo!
Olá!
Olá,
Botanic! Ê, Botanic! Olha eu aqui outra vez! Sabe, quando cheguei em Bangor
naquele domingo, chorava a cada vez que ouvia o nome das estações sendo
anunciados dentro do trem! Parecia um idiota! Porque jamais pensei nessa minha
vidinha tacanha e quase embotada que eu visse Londres de novo, Belfast de novo,
Bangor de novo! Sinceramente, achei que tinha realizado um sonho e pronto! Sabe
aquele sonho de menino, um dia ensebar os pequenos degraus de Eros lá em
Picaddilly Circus e, feito isso, tudo bem?! Missão na vida cumprida?! Sonho
realizado?! Mas foi, então, que cheguei até a tratar com desdém do Soho
principalmente depois daqueles dois primeiros dias problemáticos que tive na
capital, nunca pensei que estivesse lá numa segunda vez, andando por aquilo
tudo outra vez, e outra vez. Olha, aí... Eu de novo! É namoro ou amizade?! Como
você é gostosa nessa sem-vergonhice desbragada, dessa suruba do velho com o
novo, intelectual tendo de divisar artista, esse roça-roça, esse
ombro-a-ombro... eu, hein?! Ô, lascívia! A juventude, a experiência, os clowns, os balões coloridos da primeira
vez, as livrarias da segunda vez, a primeira vez por Sandy Row, a segunda pelas
universidades. Ô, meu pai! Olha, obrigado pelo No Alibis, pela Sinéad e pela
Moyra, tá?! Querem que eu as traduza para as paragens de cá, mas, sendo
sincero, não sei se mereceriam tal sorte. Obrigada por acolher meu perdimento.
Sei não, acho que nos veremos outra vez.
Olá!
Olá,
Carnalea! Ah, Carnalea! Pronunciei teu nome um ano inteirinho antes de entrar
no avião! Ah, danada! A primeira vez que ouvi teu nome, há dois anos atrás,
dentro daquele trem para Bangor, pensei: “Wow!
É assim que se pronuncia o teu nome?!
Que coisa linda!”. Ah, Carnalea!
Sonhei com aquele momento! Vem cá, Carnalea! Verdinha, você, hein?! Que
maravilha! Olha, acho que dessa primeira vez você não entendeu porque eu pedi
para você tirar a roupa. Eu te explico. Sabe por que?! Porque eu tinha certeza
que assim que eu repousasse a cabeça no teu ventre nu, saborosíssimo, diga-se
de passagem, eu sonharia do jeito que sonhei naquela tarde! Porque era repousar
no teu colo e conhecer, finalmente, o Mar do Norte daquele jeito que eu nunca
tinha visto e de que tanto os poetas locais poetizam! Você é uma riqueza de
coito, Carnalea, cheguei a esquecer Baía de Helena, sabe aquele encontro dos
corpos frequente, querente, amiúde, que, de repente, você encontra o sorriso da
tua amada e os dedos dela a percorrer seus cabelos sobre uma cama banhada à luz
de roubar o fôlego?!Não sei, Carnalea... Acho que não será amizade. É namoro,
mesmo! Eu volto, hein, Carnalea! Vou te levar flores, meu beijo, meu corpo e a
minha alma de Trópico de Capricórnio. Ah, Carnalea!
Olá!
Olá, Euston!
Olha, serei breve. Você é muito legal, joiado,
arrumadinho, uns parques bacanas, estações de trem legais, e tudo mais! Mas...
olha... dá, não! Aquela barulheira dos infernos a madrugada inteira, dá, não! É
sirene, é ambulância, é polícia, a madrugada inteira, todo santo dia! Cacete,
dava para ouvir de onde eu estava, lá de Argyle Street! Dava para ouvir de
Russell Square, dá licença! Qual é o seu problema?! Porque é Candem?! A turma
que vai para lá não quer nem saber?! É essa a sua justificativa?! Olha, está
tudo bem, eu vou gostar de você, tá?! Só me dá mais algum tempinho para eu me
acostumar com a idéia. Seremos amigos, pode ficar tranquilo.
Olá!
Olá,
potestades! Colocarei teus nomes em minúsculas, se vocês me permitirem. E mesmo
que não permitam, colocarei do mesmo jeito. Já haviam me avisado que vocês são
infernais, mas admito que vocês enrubescem o próprio Lúcifer. Que cancro
(permita-me a latinização desse momento) são vocês! Olha que eu não acreditava no
que vocês são capazes, mas, agora, sei. Sim, vocês vêm para a destruição
completa e total da vida! Acho que já deu, o mal que vocês causam! Não estou,
nesse momento, no melhor da minha forma, minha vida anda por um fio, mas
acredito, penso, que tudo tem limite e há um Deus para vocês. Querem se
antagonizar, tudo bem... só não contem comigo! Não, não quero, ainda sou
protagonista do meu desejo e podem tirar seus pés sobre mim! Podem tirar seus
pés sobre o meu pescoço! Sinceramente,
não quero (e não vou!) passar esse restinho de vida que ainda tenho, até esse
último dia tão pertinho que está, tendo de olhar para a cara de vocês com essa
fome de morte! Não, aqui não! Afastam-se! Não estou mais para vocês! Que a
vileza faz parte de vocês, isso aprendi, isso, agora, eu sei! O que me espanta
é a completa falta de limites, de tudo, em nome do quê, mesmo?! Do mal, puro e
simples?! Fiquem sozinhos, acho que vocês não precisam, e nem precisarão de
mim. Minha essência é outra, não compactuarei que esse expediente vil de
décadas que não respeita sequer o que sai do próprio ventre, uma determinação
dessa condição espúria que vocês só sabem externalizar?! Não dá nem para mandar
vocês para o inferno! Acho que até lá as portas estão fechadas para vocês!
Olá!
Olá,
deslealdade! Olá! Que desgosto foi ver o teu rosto! Que desgosto e quanto
arrependimento meu em ter insistido com você! Acho que não quero mais aprender
quaisquer lições de ti. Você só destrói, não acrescenta nada. Como é que você
pôde fazer aquilo, como é que você pode ter sido tão sórdida a esse ponto?! Agi
por amor, deslealdade, e você me faz aquilo?! Não considerou nada,
absolutamente nada! E ainda me estarreço na minha ingenuidade de crer que algum
sentimento nobre ou limpo pudesse te atingir, fazer você pensar, fazer você
mudar. Não, nada, absolutamente nada te atinge! Mas você é deslealdade, não é?!
Você prefere meio-lugar te apontando de meretriz do que alguma postura que seja
definitivamente diferente de tudo o que sempre foi. Deve dar um prazer danado,
a deslealdade. Deve ser afrodisíaco, quase uma droga. Como é que dá para
acreditar em seu eterno estado de sofrimento, falta de paz, se você é capaz de arrebentar contra a parede a vida
que você mesma produziu?! Como é que dá para acreditar no sentido do carinho,
no significado de uma eterna lembrança, de uma paixão silenciosa, contínua, a
eternidade de um sentimento, se você mantém toda indústria mais nojenta de ser
apenas por si e nada mais entrar na contabilidade de gestos efetivos, reais, de
qualquer bem-querença ou simplesmente a decisão de deixar de se encerrar? Quais
seriam os mecanismos que eventualmente eu adotaria para lidar com sua falsa
amizade, com sua falsa preocupação, com seu falso carinho, você, deslealdade,
que só conhece a si mesma, que só opera para si, em nome de um encerramento que
por conta dos seus atos até isso se torna difícil de acreditar? Seu cinismo é
tão pungente que ainda requer despedida?! Não se apercebera, deslealdade, que o
seu gesto em si já é a própria despedida?! Que não há mais nada a dizer, que
não há mais nada a falar, que não há mais nada a trocar?! Deixe-me sozinho,
deslealdade! Não pertenço, nunca pertencerei a ti! Sou simples, não tenho
muitas posses, restou-me apenas a habilidade de pôr em linhas aquilo que penso
e sinto, e que, infelizmente, não garantem qualquer justiça material. Meu
mundo, talvez, não esteja aqui. E, portanto, deslealdade, deixe-me seguir,
prosseguir, reconstruir as coisas que sei que existem, mas jamais te
pertencerão. Porque os efeitos nocivos de ti, deslealdade, serão eternos, desse
eterno isolamento que enfrentas, a paz não estará em ti, muito menos baterá em
tua porta. Porque és desleal por décadas, uma vida inteira, por milênios!
Adeus, deslealdade! Vai, e será sempre um desprazer da alma ter de olhar teu
rosto outra vez!
Olá!
Olá, Amor!
Achei que você não viria...
Achei que
até mesmo você não existiria. E você existe!
Sabe, pelos
percursos malfadados das mãos cheias de sangue que às vezes encontramos na
jornada, acho que até mesmo para você deve ter passado que certos sabores não
existissem mais. De repente, você chegou! Finalmente, não sei... Mas você
chegou, está aqui comigo!
Nesse vento
pequeno e frio da madrugada do nosso encontro onde esquecemos nossas mãos uma
sobre a outra. Que passamos horas a ouvir nossas vozes nas narrativas ora
amargas, ora pitorescas, das vidas que acontecem sem a gente saber. Da graça do
quem era você há uma semana atrás?! O
som estridente do rádio noite afora, com todos aqueles sotaques fundeados na
Barra. Senti até tua respiração, Amor. Achei que a minha desesperança tinha me
afastado de ti.
E você
chegou!
Tudo fôra
tão difícil nesses últimos tempos que me pego em estranhamento do zêlo e do
carinho contidos em teus pequenos gestos. Como se eu tivesse que me acostumar
de novo a esses fatos, reais, concretos, tangíveis, de você me querer e eu
querer você. O teu majestoso cuidado de não deixar minha tulipa vazia, dos
recados enviados ao longo do dia, uma atenção que pensei que não existisse mais
sobre a face desse planeta.
Que bom que
você chegou! Existe, é real!
Cheguei a
pensar que era uma pessoa perto de certa demência, loucura, insanidade, por
entender que certos fatos porventura só existissem na minha própria cabeça, ou
vontade. Cheguei a perguntar a amigos se eu era um sujeito delirante, e eles
rapidamente providenciavam um calma lá,
garoto! Não pegue o continente pelo
conteúdo!
E você
existe! Bem aqui na minha frente! É real!
Até entendo
o Vicentinho estar virado para a terra. Porque talvez seja mais interessante testemunhar
o nascer de mais um dia na intensidade da luz que nos banha, dos lençóis
amarfanhados, ou desse sono no colo de quem se quer, daqueles que se aproximam.
O mar?! Acho que ele já falou bastante do mar, essa paixão velha e renitente
dele! Acho que ele goza de certos deleites que só encontra na posição em que
ele está hoje.
Como eu
fiquei feliz em saber que você me quer, como eu quero você. E feliz em ter de
me reacostumar com o fato inapelável de que você existe. Sabe, Amor, ouço todas
as tuas músicas, todos esses teus sons que te acompanharam até aqui. "(...) Acho todas elas em comum. (...)". Hoje, penso que os loucos são os outros. E deixemos todos
eles do lado de fora. Agora, só ouço o som do teu canto, Amor! E comigo a visão
acobreada de tua pele, o uivo desse vento pelas frestas da tua janela, a
constatação do mar e suas mudanças de humores, a tua pele colada a minha.
Olá, Tempo!
Que ainda há de me trazer dissabores e prazeres. Traga-os! Habita dentro mim a
vontade e a coragem de tratá-los com o respectivo valor que merecem.
Olá!
Olá, Vida!
Olá!
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