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Montagem de Marco Aurélio Cremasco a partir da obra de Renoir, Monet e Van Gogh |
– Tio, o natal se
aproxima e me vejo na necessidade de escrever e resgatar um pouquinho o que a escrita pode nos reservar no final de uma jornada ou de uma carta. Nós, que viemos do interior, fazemos fronteira com estradas boiadeiras e deixamos correr lágrimas fáceis, pois mantemos aquela criança que insiste em não crescerContudo, a
história, na dependência de quem a registra, edifica seres imensos ou adimensionais.
A vida nos traz muito, desde que possamos dar a ela o tempo de cada um. Lembro-me,
não sei qual idade tinha, fui conhecer o Buracão de Cor para tingir as mãos com
as areias daquele lugar. Quando voltei à casa de vó Esperança descobri a
família desorientada. Perdemos o ônibus para o Guayrá. Querido tio, o que eu
gostaria que soubesse, de fato, é que nos meus sete ou oito anos, ensaiei as
primeiras cartas, porém nunca as postei. Carta escrita na páscoa endereçada ao
coelhinho; no natal, para o Papai Noel; e no dia dos Pais. Todavia, naquela
época, papai fora encontrar-se com Santino, o velho capitão de Luz Divina, em
algum canto do Céu ou em outro que lhes bem aprouvesse. Escrever, então, para
quem? Ainda assim escrevi para alguém que, na mente daquele guri, representava algo
importante ou que no futuro pudesse lhe trazer algum alento. Essa pessoa nunca a
recebeu, porque nunca acreditei em Coelho da Páscoa e Papai Noel. Cartas de
mentirinha não carecem selos. Por isso, tio, receba nesta, as cartas que nunca enviei.
De seu sobrinho:
Zé Brix.
– Que bom, Brix,
receber a sua carta. Você com a mania de escrever e de se perder no tempo. Meu
Deus, Zezinho! Como você era um Zé Perdido. Caso um pássaro lhe atravessasse o
olhar, você pregava-se nas nuvens, com pés grudados no chão, enquanto todos seguiam
e imaginavam-no de mãos dadas com algum de nós. Que nada. – Onde está o
Zezinho? Ficou para trás – era a resposta de sempre. Sem contar os sumiços ao
Buracão de Cor. Como adorava areias coloridas. Vivia brincando, passando-as
entre os dedos como fosse aprisionar a eternidade de uma existência imaginária.
Você, com o seu universo, construiu o de uma família. A sua avó, o seu avô, os
seus tios e todos que partiram, tinham certeza que, no mínimo, você viraria
astronauta ou escritor, por viver em outra dimensão. Esta vida que nos
distanciou por anos, sabiamente nos aproximou com a sua carta. A saudade, às
vezes, dói, entretanto espero que ela possa ser alívio na medida em que nos
traz resquícios de felicidade. Somos resultados do que fomos e do que queremos
ser; do que antes nos fizeram e daquilo que vivemos. Somos seres atemporais de
uma memória embaçada. Resta-nos o esforço de tirar a venda dos olhos e viver além
de nós mesmos. Não me leve a sério, Brix, isto é reminiscência de homem velho.
Mas já que me escreve, saiba que, quando você nasceu, seu pai e eu caçávamos no
Mato Grosso. Bem verdade é que soubemos de seu nascimento três meses depois.
Quando você completou um ano, seu pai e eu pescávamos em Goiás e não chegamos
para o seu aniversário. Chuva e lamaçal misturados à terra vermelha do Paraná resultam
em cola de grudar almas. Sabe como é. O seu pai desesperava-se e nunca se
perdoou por ter perdido essas e tantas outras datas. Desconfio, até, que nunca
se perdoou por ter morrido tão cedo. Escrevo isto porque sinto pontada de
tristeza na sua carta. Se dói para quem lê, imagine para quem escreve. A vida, às vezes, é muito mais dolorida do que a própria ficção que a recria. Gostaria que soubesse,
querido sobrinho, as cartas que você escreveu e nunca postou, eu sempre as recebi.
De seu tio: você
mesmo.
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