Por Flávio Viegas Amoreia, texto publicado originalmente em A Tribuna em 04 de setembro
Um filme ou livro que nos redimem do desencanto são chaves que carregamos sempre para confrontação com as sombras: lembro ter assistido O Tempo que resta, de François Ozon, por quatro vezes e em DVD ele se torna fita de cabeceira. Admiro a civilização francesa que trata do tema fundamental que o capitalismo e a futilidade tentam driblar: a morte. Uma trama simples, enredo conciso: fotógrafo no auge da beleza (franceses conseguem ser concomitantemente belos e profundos), ligado ao mundo fashion e gay cult, descobre ter dois meses de vida: o mundo não desaba, ele se liga ao essencial que passava despercebido e se integra ao mais divino elemento natural: o oceano, o mar tão uterino, símbolo reflexo do infinito. Transponho o drama íntimo do personagem para o mundo em que vivemos: explosão demográfica em países miseráveis, a ausência descarada de medidas que evitem o apocalipse ambiental que bate à porta e a glamourização da estupidez com ares de pretensa sofisticação. Enquanto o planeta pede socorro, a China se americaniza implodindo milenar sabedoria com os excessos do luxo, a América está mais preocupada com torrar petróleo do que com efeito-estufa, enquanto no Brasil a burguesia emergente revive tardiamente hábitos caretíssimos: já que não lê ou pensa, diverte-se entre festas de debutantes ou degustação de vinho como escape substitutivo do seu vazio e decadência intelectual. Nunca me passou pela cabeça que jovens urbanos fossem se ligar em música sertaneja. A vida inteligente se fecha em guetos, a solidão cultural e espiritual serão fardo kármico para aqueles que ainda pensam, interagem cosmicamente e não seguem o rebanho em direção à manada do mercado e da artificialidade. Diante do inevitável desaparecimento pessoal ou coletivo, mais que nunca devemos agir, encantar o momento, vivenciar paraísos terrenos e fazer do cotidiano a utopicamente real poetização da existência. Uma das cenas mais fortes em O tempo que resta é a despedida entre protagonista e a avó espiritualmente sofisticada: Jeanne Moreau encarna todo ceticismo e resignação com uma sociedade tão desumanizada e convencional.
Inesquecível a célebre entrevista que essa admirável Jeanne Moreau fez com a já então centenária diva do cinema mudo Lilian Gish: perguntando à atriz americana qual melhor legado que deixaria para um filho ou a qualquer jovem querido, essa deu resposta antológica: "A melhor herança é curiosidade, interesse profundo''. Desanima ver que a leitura dos jornais tornou-se hábito para adultos, profissionais liberais sem nenhum conteúdo além de suas especialidades e uma geração que cresce despolitizada, sem compaixão social e inebriada pela ascensão material. Cultura é a libido da alma: enquanto fixados na superfície do besteirol, os alienados ou reacionários travestidos de descolados tornam-se impotentes diante das verdades eternas: viver como aprendizado ao desenlace, o desapego, a elevação através da arte como religião laica, a observação do espetáculo que o horizonte no crepúsculo apresenta como metáfora do adeus... Para um libertário confesso, desprovido de preconceitos, já que todo preconceito é burro, só ela mesma, a burrice ornada de falso brilhante, ainda incomoda. Assistir O tempo que resta me comove como ler Dostoievski fechando o belíssimo conto Noites Brancas: "Um minuto inteiro de felicidade! Mas não é bastante para toda uma vida de um homem?''
Persisto retendo o instante, questionando o fugaz.
Apesar da descrença na redenção, existe reposição de estoque: ainda surgem anjos que iluminam o tempo que resta... esses que nos movem fazendo amanhecer por dentro.
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