Por Flávio Viegas Amoreira
''Matamos o tempo; o tempo nos enterra.''
Machado de Assis.
Platão, Shakespeare, Cervantes, Wilde são desses mestres tão presentes em minha vida que se tornam quase interlocutores imaginários e nada mais concreto que a riqueza dessa 'conversa' com as palavras que permeiam o ser em decantação. Machado de Assis é desses construtores de sistemas em fragmentos, catedrais da abstração inacabadas, gênios da percepção da alma humana que fazem estarrecer relido : Machado é para ser relido depois do primeiro impacto e relido anualmente. Ao perceber meandros de ''Dom Casmurro'', observar a ousadia na 'feitura' de Capitu, as ambigüidades de Bentinho, o delírio no capítulo VII de ''Memórias Póstumas de Brás Cubas'' , o reeencontro do protagonista com Marcela e revendo o réquiem que foi ''Memorial de Aires'' perfilo toda sensibilidade e argúcia filosófica do mulato, gago, epiléptico, autodidata num país carregado de preconceitos que erigiu uma das mais importantes obras literárias do Ocidente: Machado antecipou Nietzsche com fino ceticismo e foi precursor de Freud antes do advento da psicanálise.
O mais universalizante testemunho da civilização brasileira, de nossos atavios e mazelas aliou viés sociológico com narrativa da epopéia do Homem diante do absurdo da existência: em Machado as tramas são menos significativas que o subtexto, o esmiuçar do espírito, a atmosfera em que o ser sucumbe entre glória e miséria, desejo e a frustração inevitável: Machado leitor dos estóicos, de Montaigne, Swift e Sterne sabia que somos desterrados em busca de propósito numa terra de ninguém condenado ao pó do que convencionamos chamar Tempo: atributo metafísico para nomear o Nada. A estilística machadiana já tinha precedentes: a conversa com leitor, as idas e vinda no texto foram nacionalizadas com sofisticação, mas importa ressaltar a densidade entrecortada de ironia de suas observações em torno de temas pouco variáveis por serem fundamentais: morte, loucura e razão, o mistério da consciência, as pulsões que nos movem e fundamentalmente o desejo: existe palavra mais ampla e bela que desejo! em qualquer idioma? O conflito entre nossos mais profundos sentimentos, interdições e limitações são pano de fundo desse obsessivo: Machado como todo grande escritor era um obsessivo, tinha gana visceral de procurar entender ou dar razão alguma ao desvario e à nossas inconstâncias. Inquietude é outro nome dado aos homens. Além do romancista, Machado é exímio elaborador dum gênero que fascina , o conto: ''Missa do Galo'' e o ''Espelho'' são obras-primas que irmanam nosso conterrâneo à Tchekhov e Cortázar; a preciosa contenção, o ritmo afiadísssimo e o contundente retrato de nossa essência e condição são primorosos tratados dum filósofo que pensava 'contando'. As falas do narrador onipresente, os diálogos cortantes e a precariedade no equilíbrio de nossas emoções fui encontrar depois em Faulkner e na dramaturgia de Tennessee Willliams. Ler é comparar alinhavando: Machado é um farol que orienta longe.
Mundialmente reconhecido, Machado tornou possível o pensamento e fruir de Alta Literatura em português do Brasil: por ele reconhecemos nossas paixões em nosso próprio 'dialeto'. Vizinho do mar, foi ao mundo sem nunca ter saído do Rio de Janeiro: o gênio tem antenas que traz o universo por dentro e transmuta-o sem sair de seu lugar: o infinito amplificando-se. Podemos ir à China, mas sempre moramos em nós. Quando lancei meu primeiro livro usei essa epígrafe do casmurro ensimesmado: ''Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... - Duas? - Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.'' Homenagear é ir à estante e retirar qualquer dos livros do ''Bruxo do Cosme Velho'' : ele tinha o cosmo em seus neurônios brasileiríssimos. - Saúdo Machado com intelecto em emoção.
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