sexta-feira, 17 de abril de 2009

Marcelo Ariel prossegue seu mapeamento da literatura contemporânea com uma entrevista com este escritor de Guiné-Bissau

1. O que a literatura significa para você ?
A Literatura, para mim, significa o pulsar da vida dentro de mim. Este pulsar da vida - porque a Literatura é vida e, acho que, o contrário também serve -, se traduz, a meu ver, numa certa maneira de estar na vida e de ser alguém, para conosco mesmo e para com os outros. Diria, numa concepção simples, que a Literatura sendo uma forma de arte, talvez a mais perfeita forma de dizer e de significá-la, é, até certo ponto, a celebração da vida em seus vários prismas: mito, ritos de passagem, sonhos e crenças, religião e ideologia. Enfim, toda a concepção filosófica do homem. Para não ser muito redundante, diria que sendo a Literatura vida, é, por isso mesmo, a sua tradução mais nobre possível e imaginável; desta feita, o verbo carnal se torna em espírito - que é o texto literário -, com seus sentidos e suas significações, dentro da laboriosa práxis literária. Em suma, fascina-me, desde menino, a magia do verbo - o que se fez carne e veio morar entre nós -, mas também o verbo textual que é carne, e, simultaneamente, espírito erótico e sapiente.

2. Como é o atual panorama cultural de Guiné-Bissau?
A Guiné-Bissau é uma nação em construção; aliás como todas as nações africanas. Mas ela tem uma peculiaridade paradoxal: a de ser, ao mesmo tempo, hospitaleira e problemática. Explico-me: hospitaleira, porque, segundo a crença dos turistas e das pessoas que tiveram oportunidade de visitá-la e, até mesmo, de viver alguns anos, a Guiné-Bissau tem um povo maravilhoso e acolhedor - desta qualidade, diria, em coro com algumas vozes das ruas, boa para os hóspedes. Mas é, como disse a bocado, problemática, porque atrás desta hospitalidade do povo em relação aos hóspedes, ela é também problemática, porque, parece haver, por assim dizer, uma falta do espírito do diálogo entre seus filhos. A provar são os constantes sobressaltos pelos quais o país tem vivido desde que ascendeu a independência a 24 de Setembro de 1974. Descrevendo, en passant, este confuso cenário político nacional que se traduz por golpes e mortes, corrupções e intrigas de vária ordem, parece-me fácil descrever o cenário cultural em que nos vivemos.
Em termos de Literatura - que é o nosso objeto de entrevista -, diria, como o atestam os fatos e estudiosos da nossa Literatura, trata-se de um "vazio literário", um espaço em que há um vácuo de produção literária. Não porque talvez lhe falte escritores, poetas ou ensaístas; mas, porque, numa primeira análise, os literatos guineenses se envolveram direta e indiretamente com a política, o que, terá inibido a assídua e boa produção literária; outra razão que vejo, tem a ver com fato de termos poucos incentivos para a produção literária no país, nisto elenco: público leitor, editoras e, por que não, estratégias publicitárias, que visem descobrir novos talentos através de concursos literários (naturalmente com a concessão de ótimas premiações).
Penso que, olhar para a Literatura da Guiné-Bissau, neste momento, nos apontará horizontes desencorajadores pelas razões avançadas e mais outras que não cabem aqui descrever; mas algumas das grandes produções literárias podem ser encontradas nas músicas - que são autênticas poesias -, como o atestam as composições de José Carlos Schuwartz, o pioneiro da música moderna guineense, escritos na década de 70, o ano do apogeu da música e poesia guineenses; de Atchutchy Ferreira, líder da Orquestra Mama Djombo, de Zé Manel Fortes e, muito recentemente, de Manecas Costa e Dulce Neves, entre outros nomes. Teria algo a acrescentar para dizer que o Cinema guineense e o Teatro Radiofônico estão a dar passos, ainda que não gigantescos, mas significativamente, relevantes para o cenário cultural guineense. Para citar exemplos de filmes de grandes reconhecimentos internacional como Pó di Sangui, Olhos Azuis de Yonta e Nha Fala de Flora Gomes; Barudjo, uma peça teatral televisionada de Moisés Aleluia Lopes, um moço de talento promissor, além de, é claro, de Fome de 1949, de Carlos Vaz. Em suma e, ficando, por enquanto por aqui, diria que, não obstante as dificuldades nossas de cada dia, a Guiné-Bissau, está, através esforços incomensuráveis da nova geração e da geração da luta - quero dizer os filhos da revolução os que têm dos 40 anos, por exemplo, e, por que não a nossa, também somos filhos da revolução, julgo eu; ou os legítimos netos dela -, estamos a fazer o impossível para mudarmos este cenário cultural para que seja mais benéfica e saudável.

3. Fale sobre sua vivência no Brasil e como você vê nosso País?
Eu tenho uma relação com o Brasil de há quase uma década. Esta relação teve início em 1998 quando vim estudar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), graduação, e se estendeu à Universidade de São Paulo (USP), Mestrado. Ao longo destes anos procurei - espero tê-lo conseguido -, entrar na vida social, acadêmica e cultural de São Paulo, em especial, e do Brasil, em geral. Sinto-me, com toda a franqueza de espírito, um pouco brasileiro; direi que este país é minha segunda pátria. Chego, às vezes, a pensar ter sido brasileiro na outra encarnação - para ser um pouco espírita. Aqui encontrei caminhos que satisfizessem meus sonhos e meus desejos; desejos que só a arte, na sua expressão máxima e ampla, satisfaz. A beleza me seduz, me faz sonhar. O som, as cores, a estrutura de um texto, o corpus minúsculo de um átomo, o ritmo cadenciado do samba e da bossa nova; enfim, tudo isto me faz sentir-me brasileiro, tornando-me, com orgulho e elegância, guineense, que sou de naturalidade e nacionalidade. Esta é, em larga escala concisa, a minha vivência no Brasil. Este país, nosso, não vosso, mas também meu e teu, caro Ariel, como o é para os demais brasileiros, é maravilhoso, como se está careca de ouvir; mas é também, como qualquer outro pedaço de chão neste planeta, tem seus problemas e suas crises. O jeito, ao que parece, é procurarmos diminuir as mazelas sociais que nos assolam a todos e fazer disto, um paraíso de viver.

Jorge Otinta é tradutor e professor universitário na Guiné-Bissau. Mestre em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela USP e Licenciado também em Letras: Português e Tradução: Francês-Português pela PUC/SP. Abaixo um poema de Jorge Otinta :


Em ti, milano-mundo...
naviglio fio de vida
navio rio
barcarola
côrrego fluindo
que consola as almas a sorrir
a toa talvez camisola rota
flutuantes portos de palavras
temporalidades e existências
vas e contraditórias e desierarquizadas.
olhares (in)certos,
motivados pelo desejo,
que apontam para certos rumos
agora colocados no plural
neste aprontar da vida para a longa jornada
no outro lado do rio.
a travessia do rio
como um voltar ao ato existencial.
lá está a luz;
seus braços sao como remos,
nao os remos do pescador solitário,
mas os dos pescadores todos desta aldeia-cidade berlusconiana.
não há rios, nem fluxos; apenas represas que se fecham
e não se abrem, de jeito nenhum, para a sociedade.
ha terrenos baldios por onde circulam a miséria
quem dera… meu irmao… quem dera…
imigrar fosse intergrar.
em meio a este mundo de lágrimas,
nem tudo esta perdido,
ah, ia me esquecendo, há um copo vazio;
portanto, ha esperança
no simples gesto de perseguir uma luz do outro lado do rio.
ir a beira-rio e voltar numa canoa - deve ser bom
principalmente quando se rema contra a corrente
da banda larga, geografia interior deste mundo moderno:
suficientemente larga,
larga capaz de confundir
e fundir fluxos do rio,
em pedaços de muita cultura.
pela potencialidade subjetiva,
e, em sua esteira, a utopia concreta,
a travessia para uma outra margem
e as interfaces deste grande rio
nas bandas de lá
na vontade de pôr os pés no chão
donde deve circular a cabeça
neste mundo instável, mercadológico
lógico-filosófico
e também pedófilo
zoófilo por que nao?
entre a pessoa e o meio,
parece haver uma descontinuidade,
um trajeto de indeterminações
nos rumos do lado de cá
enquanto Ele está no lado de lá
que pena… se desse mais ouvidos ao mundo…
gestos leves
misturando águas
no presente diálogo in absentia
questão agônica
de forma análoga.

as ruas labirínticas
nas quais se embala o rio-existência
para nivelar a diferença
nas correntes migratórias
dos agregados do capitalismo monetário contemporâneo
em que exteriorizar nossa vontade,
ou nossos desejos,
de certa forma, impulsionam nossos gestos
para um beco sem saída: o dos conformes.
o movimento,
flutuante, seguindo a correnteza do rio, ou contra ela corre
desagua na cidade como num porre
retilinear
da nossa ilha utópica chamada modernidade
que circula por entre as margens
que leva as riquezas de dentro para fora para, em seguida,
num movimento recursivo que e, ao mesmo tempo,
partida e encontro;
numa espécie de útero aquático,
onde se presume ou se espera aportar,

sem calosidades em pontes significativas
nada estáveis ao futuro que nunca e certo.
apenas descaminhos,
uma ponte que não conduz a nada,
própria da dinâmica das águas,
com seus fluxos e seus refluxos,
no flutuante reino do provisório,
do precário,
disfluxos - existe mesmo este termo?
margens a descortinar apenas,
em ti, milano-mundo,
a pena do apenas!…

milano, outubro, 2007

1 comentários:

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.