terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Alessandro Atanes, para o PortoGente
Ao amigo Flávio Viegas Amoreira

No barco guiado pelo cego Jorge Luis Borges, o Porto Literário de hoje parte oceano adentro.

I
Em entrevista de uma série ao jornalista Osvaldo Ferrari em 1984, Borges pondera a oposição entre o entre o mar e os pampas: “Agora, essa comparação, eu acho que de fato é falsa, sempre se comprara a planície com o mar. Pessoalmente, eu o sinto de um modo diferente, porque no mar há um mistério, no mar há uma mudança contínua que não se manifesta na planície, eu acho”. Ao que Ferrari comenta: “é verdade, o mar é uma planície em movimento”.

Em outro diálogo mais adiante o escritor argentino declama de memória:

Marte a guerra, Febo o Sol, Netuno o mar
que já não podem ver meus olhos
porque os apaga o Deus.


O poema acima, dedicado a Gôngora (1561-1627), poeta do Siglo de Oro espanhol, é tema de uma das conversas. Pouco após recitá-lo, Borges responde que havia dedicado o poema ao autor castelhano: “Então imaginei esse poema, mas depois, refletindo, pensei que esse poema era injusto, que poderia escrever outro no qual Gôngora me respondesse, e me dissesse que falar do mar, de algo tão diverso, tão vasto, tão inesgotável como o mar não é menos mitológico que falar de Netuno”.

II
Mitologia, vastidão e movimento estão também em Paul Valéry. Aqui, os primeiros versos de O Cemitério Marinho:

Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!.
(Tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Confia; texto completo aqui)

Em seguida ao poema de fama, trago um tesouro local. Um texto do próprio Valéry, traduzido e publicado por Patrícia Galvão em A Tribuna em 18 de junho de 1960. No ensaio, a prosa dos sentidos substitui o tom mitológico, mas o encantamento permanece; desde a primeira linha:

Céu e mar são os objetos inseparáveis do mais vasto olhar; os mais simples, os mais livres na aparência, os mais cambiantes na total extensão de sua imensa unidade; e entretanto, os mais semelhantes a eles próprios, os mais virtualmente sujeitos a retomar os mesmos estados de calma e de tormento, de perturbação e limpidez.

Ocioso, à beira da praia, ao procurar decifrar o que cresce em nós diante dela, quando, os lábios em sal e o ouvido acariciado ou ofendido com o rumor e o brilho das águas, quer-se responder a essa presença toda poderosa, encontram-se pensamentos esboçados, traços de poemas, fantasmas de ações, de esperanças, de ameaças; toda uma confusão de veleidades excitadas e de imagens agitadas por essa grandeza que se oferece, que se defende; que chama por sua superfície e intimida por suas profundidades, o atentado.

Por isso, não existe coisa insensível que tenha sido tão abundantemente e mais naturalmente personificada que o mar. Dizem que é bom, mau, pérfido, caprichoso, triste, louco, ou furioso ou clemente; atribuem-lhe contradições, sobressaltos, sonos de um ser vivo. É quase impossível ao espírito deixar de animar, ingenuamente, esse grande corpo líquido no qual as ações concorrentes da terra, da lua, do sol, do ar compõem os seus efeitos. A ideia do caráter fantástico e violentamente voluntário, que os antigos emprestavam à suas divindades e nós mesmos à vezes atribuímos às mulheres, se impõem muito aos que estão perto do mar. Uma tempestade se improvisa em duas horas. Uma camada de bruma se condensa ou se dissipa por magia.

Conclusão portuária
Desse pequeno passeio pelos domínios de Netuno, tiro mais exemplo daquela ideia de Franco Moretti sobre a qual já escrevi algumas vezes aplicando-a aos relatos ficcionais e poéticos sobre o porto de Santos: a de que determinados lugares favorecem determinado tipo de história.

Embora ambientes contíguos, dificilmente mar e porto se revelam com a mesma importância num mesmo relato. Histórias portuárias tendem ao drama ou à tragédia: o cotidiano do trabalhador portuário, o ambiente industrial, a monotonia de idas e chegadas contínuas e nunca partir. É o lugar da memória. As histórias a bordo de um navio em alto mar não são outras senão de ação: as navegações e descobertas, as batalhas, o embate com as forças naturais, os naufrágios, as conquistas. É o mundo épico que tem o mar por cenário. Ali, o porto representa a fronteira de volta ao lar, ao momento idílico inicial das fábulas, a que concorre toda a ação. Como a tragédia não existe sem o épico, a porto não existe sem mar.

É dos portos que começaram a ser contadas as grandes ações humanas. O chão do cais é um repositório de narrativas; talvez porque o poder de observação de quem vive no porto seja aguçado pelo mar animado e de contínuo movimento e pelos encontros com gente e tradições de todo o mundo.

Referências:
Jorge Luis Borges e Osvaldo Ferrari. O Século XIX. Sobre a amizade e outros diálogos. Tradução John O’Kuinghttons. São Paulo: Hedra, 2009.

Jorge Luis Borges e Osvaldo Ferrari. Gôngora. Sobre a amizade e outros diálogos. Tradução John O’Kuinghttons. São Paulo: Hedra, 2009.

Paul Valéry. O cemitério do mar. Tradução Darcy Damasceno e Roberto AIvim Confia. Em <http://www.culturapara.art.br/opoema/paulvalery/poema_db.html>.

Paul Valéry. Uma página de Paul Valéry: O MAR. Tradução Patrícia Galvão. Ilustração Lucio Menezes. A Tribuna: Literatura Arte e Cultura. Santos, 18/06/1960. Coleção particular de Márcia Costa.


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