Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do Portogente
1 Literatura
Notei uma vez no poema Santos Revisitado (1292-1967) um testemunho sobre as mudanças urbanas em Santos no período inscrito em seu título. Pablo Neruda registra em seus versos a transformação da paisagem urbana. Em seguida, minha tradução de sua quinta e última parte:
V
Compreendo que escutei a esfera colocando o ouvido em
um ponto
e às vezes ouço apenas um rumor de marés ou abelhas:
perdão se não pude e a tempo escutar essa locomotiva
ou o estrondo espacial da nave que estoura em seu oco de
aço.
e soube assoviando entre constelações e temperaturas:
perdoem algum dia se não vi o crescimento dos edifícios
porque estava olhando uma árvore crescer, perdão.
Tratarei de cumprir com aquelas cidades que fugiram de minha
alma
e foram armados de duras paredes, altivos elevadores
deixando-me fora na chuva, esquecido nos anos ausentes,
saudando este grande esplendor sem desejo nem inveja:
Neruda se justifica por não ver o progresso. A repetição do bordão “perdão” (duas vezes no singular e uma vez implorando um perdão coletivo) marca o início e o fim da enumeração de duas imagens de elaboração poética de fatos do crescimento urbano de Santos: a ferrovia e os prédios levantados ao longo da orla entre as décadas de 50 e 60. Se Neruda é sincero ou um irônico nostálgico, aí é questão de longa discussão, além de minha pretensão ensaística.As cidades que fugiram da alma é outra imagem poética da marca afetiva destes eventos. “Duras paredes”, “fora na chuva”, “esquecido nos anos ausentes” completam o clima nostálgico. É exatamente neste clima melancólico que faz fundações o edifício poético que reflete esteticamente o “crescimento dos edifícios”, tornando-o impactante e perene em nossos olhos (o “instante quase-já” do qual fala Alberto Martins).
2 História
Na primeira parte do poema, Neruda registra poeticamente o drama social (o sangue dos homens negros mortos para continuar suando). Daqui dou um salto no tempo e trago um contemporâneo que poetiza outro drama, o urbano. Não vou equiparar qualidades literárias, que não sou louco. O objetivo desta segunda seção é mostrar como o “crescimento dos edifícios” surge em outra forma poética, escrita e publicada entre mais de 30 anos após o poema de Neruda. O extrato histórico da poesia do chileno ocorre durante a Guerra Fria, em meio às tensões entre capitalismo e comunismo, ambos ainda em busca do progresso que nos fez esquecer olhar as árvores.
Nos anos neoliberais, pós-Muro de Berlim, a intenção política se faz no grito, como os Torpedos de Zéllus Machado, publicado no início do século XXI. Na cidade de Sotnas, sob o governo de Tobi Surman e o jugo das corporações invencíveis, o artista brada contra os representantes locais do capitalismo financeiro / motel de alta rotatividade em sua fase barroca. Transcrevo o trecho central de Cidade sombra, que encerra o livro:
Arsênio Vendes, Vórtice, Estruturar, Elevas, Realis
E outras tantas e tantos indecentes
Terroristas do meio ambiente
Gananciosos, Monstros, Demagogos
Avassalando e abocanhando terrenos feitos ogros
Trocaram o lazer livre por consumo
A cidade agora saiu do prumo
A História virou pó, casas derrubadas
E eles dizem ainda com a cara mais mascarada:
E outras tantas e tantos indecentes
Terroristas do meio ambiente
Gananciosos, Monstros, Demagogos
Avassalando e abocanhando terrenos feitos ogros
Trocaram o lazer livre por consumo
A cidade agora saiu do prumo
A História virou pó, casas derrubadas
E eles dizem ainda com a cara mais mascarada:
Eu amo esta cidade...
Zéllus Machado nos deixa um registro histórico em forma literária do momento em que o neoliberalismo pisa em bandeiras de uma cidade que já foi chamada de Barcelona Brasileira e Moscouzinha Brasileira. Ele testemunha o nascimento da Miami Brasileira (ou Dubai do Brejo, na versão cunhada por Flávio Viegas de Amoreira após o colapso financeiro de 2008).
3 Ética e estética
O capitalismo financeiro / motel de alta rotatividade em sua fase barroca se expressa preferencialmente por uma arquitetura que nos atormenta a alma.
O capitalismo financeiro / motel de alta rotatividade em sua fase barroca se expressa preferencialmente por uma arquitetura que nos atormenta a alma.
Em postagem recente em seu blog (Varandas gourmet e o mal-estar dos paulistanos), o professor José Salvador Faro, doutor e professor da pós-graduação em Jornalismo da Universidade Metodista, ao tratar dos empreendimentos imobiliários em São Paulo, apresenta o conceito de kitsch formulado por Umberto Eco em “A estrutura do mal gosto” (“kitsch é a obra que, para justificar sua função de estimuladora de efeitos, pavoneia-se com os espólios de outras experiências, e vende-se como arte, sem reservas”). Em seguida, o professor fulmina:
Aí é que está... Leio agorinha, no caderno Cidades/Metrópole, do Estadão, a notícia segundo a qual aquele espigão chamado Villa Europa (observem o kitsch sorrateiro nos dois "eles" do nome do prédio), de 31 andares, que causou polêmica depois do embargo da obra em 1999, mas já "regularizado" e certamente concluído, ganhou dois vizinhos do mesmo tamanho (31 andares cada um) e com a mesma pompa e exuberância que só o "novo" capital é capaz de gostar e construir. No total, são três monumentos ao mau gosto que se erguem agressivos numa das margens do Rio Pinheiros, uma região que foi ganhando alguma beleza de paisagem nos últimos anos.
São lançamentos que proliferam na cidade, não tanto pelo tamanho, mas pela voracidade com que se impõem aos direitos de suas vizinhanças e dos cidadãos em geral, invariavelmente capazes de seduzir o arrivismo de sua clientela: afinal, é preciso dissociar a riqueza da simplicidade e fazê-la - a riqueza - manifestação de poder e de acinte; o bom gosto e o comedimento da arquitetura que se danem!
É o que ocorre aqui na cidade portuária com um polvo monstruoso na Ponta da Praia e um Godzila com vista ao mar sobre a catedral na praia do Embaré.
A Igreja do Embaré com um godzila ao fundo; entre os dois, os prédios que Neruda viu crescer. |
Pós Escrito
Acima citado, o escritor Flávio Viegas Amoreira costuma dizer em público que “Santos tem que ser do Mendes, do Gilberto Mendes”. Bem, o compositor Gilberto Mendes anunciou publicamente no sábado que deixa o Festival Música Nova, criado por ele em 1962. Está cansado das dores de cabeça administrativas e agora espera que alguma instituição de ensino ou a própria cidade de Santos, por meio da Prefeitura, passe a realizar o Festival. Cabe à sociedade santista responder, material e simbolicamente, à seguinte pergunta: Que Mendes Queremos?
Referências
Pablo Neruda. Santos Revisitado (1927-1967). In: La Barcarola. Buenos Aires, Argentina: Editorial Losada, 1972 (1ª ed. 1967).
Zéllus Machado. Torpedos: poesias, crônicas, canções. Santos: Petardus, s/data.
Esta foto da Igreja do Embaré, com os prédios ao fundo, é, no mínimo, assustadora.
ResponderExcluiro charme de Santos são os précios antigos...
ResponderExcluirMinha Antropofágica Santos - versos.
ResponderExcluirVou tratar minha cidade:
como minha querida mulher,
vou percorrer suas curvas
até seus pés descalços:
como Peruíbe e Itanhaém.
Sem fazer de conta que só tenha cabeça:
como Santos,
onde cresçam cabelos:
como prédios,
desobstruir artéria:
como sua antiga via férrea
que me leve ao seu coração:
como São Vicente.
Permita-me passar por seus seios:
como Mongaguá e Praia Grande,
faça me perder em seus braços:
como Bertioga e Guarujá
e beijar sua boca voraz:
como Cubatão.
Autor: Ricardo Rutiglinao Roque.
Santos em Defesa de Uma Poética Caiçara, no link: http://rutiglianoroque3.zip.net/arch2011-01-16_2011-01-22.html#2011_01-16_16_27_05-121995562-0