quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Alessandro Atanes, para o Porto Literário do Portogente

Escrevi uma vez como Emma Zunz, personagem que dá títuto a um dos contos mais incíveis de Jorge Luis Borges, procura a área portuária de Buenos Aires em busca de uma história para compor seu álibi para a vingança que planeja. Na mente da jovem trabalhadora, o universo portuário se mostrava como um depositório de histórias e para lá ela foi atrás de uma que lhe coubesse à trama que planejava. 

I
Em Nada (1945), romance de estreia de Carmen Laforet (imagem; Barcelona, 1921 – Madri, 2004) publicado após vencer o prêmio Nadal, conhecemos outro tipo de protagonista feminina, Andrea, uma jovem orfã que chega do interior para estudar em Barcelona, onde acaba morando com a avó, tios e agregados na casa da família na rua Aribau.

Entre a faculdade, onde sua timidez não lhe ajuda a conquistar amizades, e a casa da família, em um contínuo clima de conflito e tensão entre seus moradores, resta à protagonista caminhar pelas ruas de Barcelona para se aclimatar com seu novo espaço.  Ao descrever os passeios de Andrea pela cidade, a narrativa de Laforet ecoa o título do livro, transformando as paisagens urbanas em reflexos do isolamento e das indecisões da jovem, que narra o livro como se fosse suas memórias. A tradução é da coluna:

Não sabia se tinha a necessidade de caminhar entre as casas silenciosas de algum bairro adormecido, respirando o vento negro do mar ou de sentir as ondeadas de luzes dos anúncios de cores que tingiam com seus focos o ambiente do centro da cidade. Ainda não estava segura do que poderia melhor acalmar aquela quase angustiante sede de beleza que tinha ouvido da mãe de Ena. A própria Via Layetana, com seu suave declive desde a praça de Urquinaona, onde o céu se lustrava com a cor vermelha da luz artificial, até o grande edifício dos Correios e o porto, banhados em sombras, argentados pela luz estrelar sobre as chamas brancas dos faróis, aumentava minha perplexidade.

Ouvi, gravemente, sobre o ar livre de inverno, os toques de sino das onze formando um concerto que vinha das torres das igrejas antigas.

A Via Layetana, tão larga, grande e nova, cruzava o coração do bairro velho. Então soube o que desejava: queria ver a Catedral envolta no encanto e no mistério da noite. Sem pensar mais me lancei na escuridão das ruelas que a rodeiam. Nada podia acalmar ou maravilhar minha imaginação como aquela cidade gótica naufragando entre úmidas casas construídas sem estilo no meio de seus veneráveis silhares, mas que os anos haviam patinado também com um encanto especial, como se tivessem se contagiado de beleza.

O frio parecia mais intenso encanado nas ruas torcidas. E o firmamento se transformava em tiras abrilhantadas entre os telhados quase juntos. Havia uma solidão impressionante, como se todos os habitantes da cidade tivessem morrido. Palpitava ali algum gemido do ar nas portas. Nada mais. 

II
O acerto narrativo de Carmen Laforet está aí, em fazer da solidão da personagem e da solidão das ruas uma mesma narrativa. Ao passar pelo porto, ao contrário do que ocorre com Emma Zunz, Andrea não busca uma história, ela quer é se livrar das histórias familiares que a oprimem. O espaço portuário, da escala da vastidão, torna-se assim uma promessa de vazio, o nada do título:

Via que as pessoas me olhavam com certo assombro e, ao perceber, mordi os lábios de raiva... “Agora faço gestos nervosos como Juan”... “Estou ficando louca também”... “Tem quem fica louco de fome”...

Desci pelas Ramblas até o porto. A cada instante se enternecia em mim a lembrança de Ena, tanto carinho me inspirava. Sua própria mãe tinha me assegurado que ela me estimava. Ena, tão querida e radiante, me admirava e estimava. Me sentia como enaltecida ao pensar que haviam me requisitado uma missão providencial junto a ela. Eu não sabia, no entanto, se realmente ia servir de alguma coisa minha intervenção em sua vida. A advertência que Glória me fez quando esteve comigo naquela tarde me enchia de inquietações.

Estava no porto. O mar encaixotado apresentava suas manchas de óleo brilhante a meus olhos; o cheiro de breu, de cordas, penetrava em mim profundamente. Os barcos ficavam enormes com seus altíssimos costados. Às vezes, a água parecia tremida como por um golpe da cauda de um peixe: uma barquinha, um golpe de remo. Eu estava ali naquele meio-dia de verão. Da coberta de algum navio, talvez, uns olhos azuis nórdicos me veriam como minúscula pincelada de uma estampa estrangeira... Eu, uma garota espanhola, de cabelos escuros, parada um momento no cais do porto de Barcelona. Dentro de uns instantes a vida seguiria e iria me deslocar para algum outro ponto. Me encontraria com meu corpo emoldurado em outra decoração... “Talvez – pensei afinal, vencida sempre por meus instintos martirizados – comendo em algum lugar”. Tinha pouco dinheiro, mas ainda algum. Devagar, fui aos alegres bares e restaurantes de Barceloneta. Nos dias de sol , azuis ou brancos, dão sua nota marinha e alegre. Alguns tinham mesas na calçada onde pessoas com bom apetite comem arroz e frutos do mar, estimuladas por quentes e coloridos odores de verão que chegam das praias ou das docas do porto.

Há uma edição recente do livro em português publicada em 2008 no Brasil pela editora Alfaguara.

Referência
Carmen Laforet. Nada. Barcelona: Destino, 2007 (1ª ed. 1945).

1 comentários:

  1. http://poesiadelisocarenu.blogspot.com/2010/06/porto.html?utm_source=BP_recent

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