quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Alessandro Atanes, para o Porto Literário

Foi pela temática, o 11 de setembro de 2001, que aproximei no artigo da semana passada obras tão distintas como El mal de Montano (2002), de Enrique Vila-Matas, e Edoardo, o Ele de Nós (2007), de Flávio Viegas Amoreira. Nos dois romances – ainda que “Edoardo...” possa ser considerado uma novela – acompanhamos como a data afeta narradores e personagens. Hoje, guiado pela leitura das aulas de Roland Barthes sobre A Preparação do romance, retomo os dois livros por outro ponto em comum: ambos debruçam-se sobre o fazer literário e a própria Literatura.

Barthes, semiólogo, um dos nomes do estruturalismo francês, tem passado, assim como todo o estruturalismo, por uma revisão crítica. Na abertura da aula de 1º de dezembro do ano letivo de 1979-1980, o próprio Barthes já não se considerava propriamente um estruturalista “stricto sensu” como Lévi-Strauss, que, ao chegar de navio ao Brasil em 1935 para dar aulas na USP, descreve a paisagem entre o porto de Santos e a Serra do Mar como “trópicos de sonho” (em Porto Literário, confira Lévi-Strauss em Santos e Barthes, Marlon Brando e o isolamento dos portos).

Roland Barthes em aula no Collège de France no final da década de 70
I
Em uma das partes de El mal de Montano, o narrador, que tudo vê e entende pelo filtro da literatura (esse é o Mal de Montano do titulo, uma infecção literária), percebe que o problema está mesmo nas pessoas que não veem o mundo dessa forma e pensa em iniciar uma cruzada para salvar a literatura. O que Vila-Matas faz em forma de ficção, o crítico e ensaísta Tzvetan Todorov fez em A Literatura em perigo (2009, aqui comentado em Mesmo em perigo, a literatura salva), onde inicia uma cruzada contra a crítica que sufoca a literatura com uma carga insuportável de teoria.

Ali ele acusa justamente o estruturalismo (entre outros) como um dos responsáveis pela inflação de teoria no ensino universitário, onde se estuda mais teoria do que as próprias obras. Mesmo nesse momento de revisão pelo qual Barthes também passa, a leitura de seus textos sobre a escrita e o fazer literário mantém-se fresca e inventiva. Ele era mais literário que teórico, mais exploratório do que afirmativo, de um amor aberto e declarado à Literatura.

II
Mais já para além da metade da aula Barthes escreveu / disse algo que ilumina essa obsessão expressa em “El mal de Montano” pelo perigo que a literatura possa correr. Para ele, o ato criativo é “não propriamente um Triunfo sobre a Morte, mas uma Dialética do Indivíduo e da Espécie”. As anotações, com uma profusão de sinais e traços e uma brevidade de lista de itens, revelam o componente afetivo, ou psicológico, da obra de Vila-Matas:
… “acabo” (a obra) e morro, mas, ao fazê-lo, algo continua: a Espécie, a literatura. Eis por que a ameaça de definhamento ou de extinção que pode pesar sobre a literatura soa como extermínio de espécie, uma forma de genocídio espiritual.
Escrevi sobre El Mal de Montano que o livro é formado por uma narrativa em que o narrador / protagonista é ficcionalizado sempre com aspectos parecidos, mas de forma levemente alterada entre uma parte e outra do livro e que todas as partes têm a própria literatura, principalmente diários de autores, como matéria-prima. Barthes morreu em março de 1980, um mês após o fim do curso e poucos meses antes de completar 65 anos, mas parece, como não poderia deixar de ser, que leu El mal de Montano melhor do que eu:
Compreendemos bem o que acontece na relação do Livro anterior com a Escrita ulterior: a) Há uma imitação muito difusa, mesclando, se necessário, vários autores amados, e não uma imitação única e maníaca: o que ’inspira’ o leitor-escritor (aquele que ’espera’ escrever) já é, para além de determinado autor amorosamente admirado, uma espécie de objeto global: a Literatura (como Proust diz: a Pintura). b) A ’inspiração’ é conduzida ’por trocas’; há trocas de conceitos (eu diria de ’fantasias’) estéticos: “a idéia de bela pintura”, “um belo efeito de pintura” etc. c) Essa idéia copiada (e não o que ela representa) é ’preconcebida’: é preciso concebê-la antes de escrever, concebê-la entre ’ler e escrever’  › essa relação ’terceira’ (em patamares), que diferencia a inspiração da simples imitação...
III
A lida de Flávio Viegas Amoreira com a escrita sobre a literatura toma outro caminho e se dobra sobre a própria linguagem, torcendo a gramática e a sintaxe, usando neologismos, arcaísmos e fazendo desvios por outras línguas, do qual exemplo é o seguinte trecho de Edoardo, o Ele de Nós, nessa triângulo afetivo impactado pelo 11 de setembro:
Deus alimenta escrita / reproduzimos sua insubstancialidade. Obsessivamente reescrevovo: revolvendo amarfanho escarafanchono sílabas prenhadas. Volumes juvenis linguajar denso escritor tímido cultivado tinha medo dar tudo ao mundo, torno-me gaveta em chamas abrasivo pululundo eiras. O primeiro que esqueço é o mais amor tido: indiferenças rondam / paixão parece aquilo que guardo no Juízo Final onde saberei das quantas / pouquinho fica fica esmigualhado / mesquinhezas são segundos /paixão é na ponta da vida inteira. Terei você Edoardo além da conta imprecisa.
Até no detalhe da relação triangular afetiva, a aula de Barthes também ilumina a dissolução da linguagem no fazer da escritura de Flávio Viegas Amoreira:
Ora, o que busco, o que quero, é que algo ocorra: ’uma aventura’, a própria dialética de uma conjunção amorosa, em que cada um vai deformar o outro por amor, e de modo a criar um terceiro termo: ou a própria relação, ou a obra nova, ’inspirada’ pela antiga.
Ainda na mesma aula, Barthes me ensinou uma explicação sobre a profusão do verso de Amoreira, “chuva no mar é desejo”, de Escorbuto – Cantos da Costa, mantra já transformado em música (três vezes), cartazes, coleção de roupas. É o que o professor chama de “frase-sensação” ou “frase-observação”, aquela que muitas vezes é anotada em uma caderneta, em uma folha de papel, que se torna um signo de um livro ou de uma obra. Leitor e admirador de Barthes, creio que o o próprio Flávio concordaria com a análise. Ele também participar nesse jogo da imitação / inspiração sobre o qual fala o semiólogo. Flávio usa procedimentos semelhantes, como as barras colocadas separando as frases como versos, a profusão de dois pontos (algo em comum com Barthes) em uma sequência de frases-sensação. Barthes, o "Ele dos Livros", é uma das chaves de leitura da obra de Amoreira.

Há uma frase de Umberto Eco que já usei recentemente em epígrafe a uma coluna, mas creio que vale aqui outra vez: “Os livros falam entre si”.

Pós Escrito
No total, o segundo volume das anotações traz 11 aulas. Hoje Porto Literário se debruçou apenas sobre a primeira. Creio que a leitura das anotações acompanhará a coluna por muitas semanas ainda.

Referências:
Roland Barthes. A preparação do romance II: a obra como vontade: notas de curso no Collège de France 1979-1980. Texto estabelecido e anotado por Nathalie Léger. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
Enrique Vila-Matas. El mal de Montano. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2002.
Flávio Viegas Amoreira. Edoardo, o Ele de Nós. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.

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