terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Márcia Costa, de Barcelona


Semanas antes de ir a Paris, um livro de Enrique Vila-Matas chamou por mim na estante de uma livraria aqui de Barcelona. Como Paris no se acaba nunca me parecia uma recomendação obrigatória para quem vai conhecer a cidade, fiz caber meu exemplar na mala.

Dias flanando pelas ruas da capital francesa debaixo de chuva e de praticamente nenhuma gota de sol, aconteceu o previsível: apaixonei-me pelos cafés e todo o seu lastro de intelectualidade, assim como pelos bares que iluminam as ruas da cidade três élégant. Vi  tudo que era possível em seis dias, passei por monumentos mil, fui à Shakespeare & Co, tomei sopa de cebola e vinho francês, comi baguete na rua, etcétera, etcéteras… Hoje aqueles dias mais me parecem ficção.

Vila-Matas, que teve a sorte de viver Paris durante um bom tempo, nos fala de lugares menos estereotipados:
Me gusta Paris, la pace de Furstemberg, el 27 de la rue Fleurus, el Museu Moreau, la tumba de Tristan Tzara, las rosadas arcadas de la rue Nadja, el bar Au Chien qui Fume, la fachada azul del Hotel Caché, los puestos de libros en los muelles. Y sobre todo una carretera secundaria, cerca del castillo de Vincennes, en la que hay un modesto y antiguo letrero sobre un poste que senãla, como si acabáramos de llegar a un pueblo, que vamos a entrar en Paris. Me gusta mucho en esta ciudad para por un sitio que no he visto hace tiempo. Pero también lo contrario: pasar por uno por el que acabo de pasar. Me gusta tanto lo que hay en Paris que la cuidad no se me acaba nunca. Me gusta mucho Paris porque no tiene catedrales ni casas de Gaudí.
De volta a Barcelona, me vi revisitando Paris, desta vez levada pelas mãos desse que é um dos grandes escritores espanhóis, com uma obra traduzida em 32 idiomas e ganhadora de diversos prêmios. Pois eis que em uma tarde de janeiro descubro que naquela mesma noite Vila-Matas participaria de uma conversa com o escritor Iván Humanes na “Las tardes del Gatopardo”, organizada pelo Laboratório de Escritura, no bairro de Gracia, reduto cultural de Barcelona. Ulalá!

Eu e Santiago chegamos atrasados no concorridíssimo evento, onde os fãs de expressão culta se entupiam em uma grande sala para ouvir o grande Vila. A funcionária do lugar foi logo avisando que não havia espaço para mais ninguém entrar, mas como ainda sobrara uma vaga no chão, tratei de me meter ali mesmo. Melhor lugar para escutar histórias não havia.

Vila-Matas falou sobre como se embriagou de Paris, sobre sua forma de criação, seu temperamento, sobre experiência real, ficção e verdade. Relatou o curioso processo de escrita do conto Porque ella no lo pidió, baseado em sua colaboração com a artista francesa Sophie Calle e incluído no livro Exploradores del abismo. Sophie, que ele descreveu divertidamente como “uma mulher estranha”, lhe pediu que escrevesse sobre um relato que ela protagonizara. O escritor tratou de narrar para nós toda a gênese do conto, desde o primeiro encontro que teve com ela pra acertarem a parceria até o momento da escolha da imagem que acompanharia a criação. Lembrou outras diversas histórias que originaram outros textos, a maioria das quais fez a plateia rir demasiado. Foi das vivências como escritor até as peripécias como jornalista, quando entrevistara gente como Dali. Impossível anotar e descrever tudo.

E o engraçado é que ele jura ter dificuldade de falar em público. Irônico e tímido, explicou: “Escrevo para não ter que falar em público. Em minha primeira conferência fumei o tempo todo, então uma senhora me disse: ‘você disse que não pensava em se suicidar, mas não parou de fumar desde que chegou aqui’”. O pavor de plateia é tanto que ele arriscou artifícios, alguns deles com efeitos desastrosos: “Eu tomava pastilha para poder falar em público, até que uma espectadora me disse: ‘Vocês escritores estão muito tranquilos após a morte de Franco!’”

Contou que, ao escrever, gosta de usar a primeira pessoa porque “é algo mais próximo”, ao contrário da terceira pessoa. “A primeira pessoa pode não ser eu, pode ser outro narrador”. É tanta história que ele transforma e é transformado por elas: “Sempre me contradigo”.

Quase tudo que vive, ele parece transformar em livro. Algumas histórias proibidas que escutou, porém, tiveram que ser engavetadas: “Há histórias que queria contar, mas por minha própria segurança não contei. Soube de algo do Pinochet que se publicasse provocaria mortes no Chile. Foi um acesso involuntário. Me criou um dilema moral, mas a revelação não mudaria a história, só teria causado um verdadeiro problema”.

Aos interessados em inovar em literatura, tratou de explicar: “Para ser contemporâneo e vanguardista não é preciso inovar, mas sim recordar que a arte é a vida e a vida é arte. E tudo pode ser arte. Eu criei arte a partir da minha vida. Tudo pode ser motivo de criação, basta inovar e ampliar. Com o cinema de Godard descobri que podia narrar e organizar a narrativa de outras maneiras”.

Para os bons escritores que ainda amargam o anonimato, reforçou o peso do sistema de arte como condição para o reconhecimento do artista no mercado. “Escritores jovens se equivocam de pensar que o que escrevem não interessa, mas o que ocorre é que o que eles fazem ainda não chegou aonde e a quem tinha que chegar”.

À espera das perguntas de escritores e de leitores, teve como resposta o silêncio absoluto de um público igualmente tímido, entorpecido diante da fala de um grande. “Ninguém pergunta nada, então vou ler uma resposta que preparei para uma pergunta que sempre me fazem, se Exploradores del abismo é autobiográfico. A invenção da história está aí sempre. Quando recordamos algo é porque vivemos. No ensaio se pode mentir. Às vezes a verdade não é mais do que a interpretação do que vivi. Busco a realidade através da ficção. A ficção se acerca da verdade mais do que tudo que conheço. A Metamorfose, do Kafka, é realismo puro, é a verdade de Kafka. Escritores usam a ficção para falar da verdade, sua verdade, que não é a realidade”. Para entrar em seu mundo,  ele costuma recomendar a leitura do conto Porque ella no lo pidió, onde realidade e ficção são indissolúveis.

E quando parecia não haver mais o que perguntar e o que contar, Vila-Matas se despediu. Ali, naquela sala, ficamos mais certos de sua perspicácia, da sua capacidade de transformar um pingo de chuva em uma grande história.

Ao final, posou, sem reclamar, para os fãs armados de celulares e câmeras fotográficas, autografou livros e saiu, escoltado por alguém. Do lado de fora, ainda ficou um tempo a conversar com amigos, degustando aquela noite bonita, como se estivesse em um café de Paris. E eu, até hoje, quando me pego a pensar na viagem a Paris e neste encontro com Vila-Matas, me pergunto: foi ficção ou realidade?

Em tempo:

Daqui a alguns dias tem mais Vila-Matas em Barcelona, segundo anuncia o seu site:

Jueves 13 de febrero, 19 h

Vila-Matas y editorial Ardicia presentan la novela Mi Carso, de Scipio Slataper (1888-1915).

“Piedra angular de la brillante tradición literaria triestina e impregnada del espíritu fronterizo que la caracteriza, Mi Carso es un texto de rara y agreste belleza, en cuyas páginas conviven, en asombroso cruce de géneros, la novela, la reflexión filosófica y el poema en prosa.”

La Central, calle Mallorca, 237, Barcelona.

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