sexta-feira, 20 de março de 2015

Obra de Helene Schjerfbec


Por Flávio Viegas Amoreira


Sou um homem pronto que se desdobra a partir do âmago: passados os 40 anos, a maturidade nos diz estarmos assim num sanduíche entre a juventude que deixou poucas marcas e a velhice improvável.

Aprendemos pouca coisa definitiva com o passar do tempo: a pedagogia da vida é a prática mais falha. Sinto-me estranho por não ter sabido reger meus instintos: repito os mesmos equívocos da adolescência que execrei: aliás, com essa idade, percebemos que a maior parte do mundo é execrável. A vantagem é que nesse ponto estou numa ótima perspectiva: o sexo já diz cada vez menos, acredito na rede de amigos que não fazem parte do execrável; no entanto, ainda tenho recaídas duma peste  purulenta: a paixão. 

Eu conheci Tom no último fim de verão: um sábado despretensioso, uma vernissage em São Paulo e dali saí sem grandes pretensões além do diálogo breve com um homem estimulante. O detalhe é que mesmo no burburinho da entrada para a exposição, já notara aquele rapaz com um ar destacado da pequena multidão: a beleza está no centro dessa trama que me corroeu e de onde suspeito vou saindo ileso. A beleza me tocara, ela atemoriza, quem sabe por isso deletei seu impacto até que ele me ligasse 15 dias depois. “De onde surgem os anjos? Qual caminho fáustico tomado por Lúcifer?” Sim, a beleza é diabólica quando traz em seu rastro: fascínio intelectual, afinidades culturais, toda bagagem que nos fode quando caímos de quatro mal percebendo o tanto que nos desnorteia.  Eu que sempre me senti Aschenbach, saído de “Morte em Veneza” morando no velho porto de Santos, fui sempre o que rastreia o que me atrai, aquele que primeiro liga, aquele que faz a corte mesmo tendo noção do patético de minhas expectativas. Não, por intuição até, creio que ter esquecido intencionalmente a aparição desse Tadzio com 30 anos , por precaução: queria ter evitado o que viria. Foi quem busco que me procurara: o desejo é ascendente quando despreparados.  Trabalhamos com arquétipos: impossível prever que no feitio dum gato óbvio com ares de surfista, morasse um intelectual que correspondesse ao meu sonho de interlocutor. Os artistas plásticos, assim como os músicos, são via de regra, especialistas limitados em seu campo de ação. Tom citava Pound de ouvido, discorria com propriedade sobre Lautreammont e tinha mesma reverência mítica pela obra de Francis Bacon: selei meu amor unilateral estimulado por sinais que pareciam dirigidos a mim, mas na verdade eram expressões de sua sensibilidade. Entronizei uma majestade que convivia no cotidiano de sua intimidade com a Arte: exacerbei mais pela sua singularidade num mundo idiotizado, que pela sua raridade. Ele não é tão raro, mas caiu-me num instante em que não mais corro afoito por preciosidades. Eu queria São Paulo com toda sua fauna, seguir compondo meus livros com bafo de maresias, curtir meus amigos dissolutos nas madrugadas de praia vazia observada dalguma janela escusa e libertina. Agora pretendo relatar sem lamento essa New Orleans devastada que reconstruo dentro de mim. 

“Amanheceu 06h45 e a noite chega 17h39; nenhuma fé nas santas escrituras, Montaigne já se tornou demasiado contundente e repetidamente verdadeiro: seria tão simples seguir o divino, quando de real tenho dois pequenos rochedos que observo e que seguiram na sua ronda de milênios. Vestígios de água na lua de Saturno e uma pandemia gripal me são tão indiferentes quanto a brutalidade dessa coisa chamada de vida quando olhada de frente e o de frente na vida é uma rua deserta na primeira hora do dia. As noites são tão humanas, por quê a aurora sempre me foi assustadora quanto um inseto numa parede de mofo? A teia nos envolve: voltei minha trajetória na perspectiva de Tom: quando ele nascera, eu já contava 13 anos e agora todo meu caminho é o percurso de sua espera. O que ele fazia enquanto eu trepava e amava desmedidamente me expõe a ausência de recursos para retomar meu fio da meada.  Por que a existência não é concomitante a nexo e causalidade: tudo parece tão absurdo e é tão somente humano.  Se em Xangai, Moscou ou New York que o tivesse deparado primitivamente , a fatalidade irônica era que ele tivesse nascido e crescido no mesmo porto onde vivo até hoje. 

É primitivo encontrar numa megalópole um amor perdidamente avassalador e ele ser como eu descendente do mesmo vento e contorno de serra debruçada sobre uma nesga de mar. Eu estava para enlouquecer até que resolvesse escrever: qualquer mão é um mimo que estanca essa ventania dentro de mim:
as coisas mesmo que suspiram por gritar e nada ecoa por que me pertenço a ti para quem escrevo. Tenho um espaço poético que reúne os átomos e ensejam a realidade remoldada que tinha se estilhaçado: os pequenos espaços, as micrologias que tiram ilusão que eu tinha do grande espaço. Não tenho mais Tom, mas retive sua possibilidade em minha Vida: refaço seu percurso, visito os pontos onde ele passara a infância, fui banindo sua realidade à medida que construía minha imaginação. Não sei o que é gênero de Alma, não gosto da ideia de amar um sexo: eu me afeiçoara por sua atmosfera. Tom era os fragmentos que não me compunham, deleguei a ele o fato de ser inteiriço uma pessoa: levara todos solavancos do sentido: tinha amarrado seu retrato vagando por corredores labirínticos: Tom mora no mais fálico edifício de São Paulo: numa janela eu um dia me deparei com o sino da Consolação me tocando pelos dedos badalados: esfumei tudo numa prosa que se sustenta como garras num penhasco. Faltam-me agora os que desconheço: quero os que não me tiveram convivência, preciso achar o humano além desse concreto que me aterrou como todo cimento indigesto da Praça Roosevelt. A crônica do meu espaço é feita por ajuntamento: dou-me em vida amplo panorama estirado ao leitor: eu amei um homem que me elucidou para mim. Quero absorver a realidade somando tudo que era antes e será depois de Tom: o que sucede, o que passa, o que passei. O leitor participante deve ser aquele que também se pergunta por que Tom em minha Vida... quero dar narratibilidade ao impossível de dizer: o essencial em flashs irredutíveis, a possibilidade de estória depois da abstração ou por dentro dela: reter o inexpresso nesse elo do indiscernível. Agora preciso aprender declinar o verbo da não-presença: um livro para nos redimir da desistência de significados: livro livre andante: Sísifo, narrar é persistir no absurdo de reter o que se conta. Seria o universo uma vídeo instalação? Das idéias a de Universo é única duradoura.”


II- "Seguia pela chuva fina, enorme, sobretudo negro, cigarro incerto pendendo da boca úmida, intumescências do rosto contra o espelho d’água do Céu fechando-se sobre a urbe.... os sapatos destacados da calça , franzia o rosto lívido, era um sensação intensa que se debruçava na direção de meu corpo, abstrata como um trompete em sustenido atravessando a garoa flutuante enquanto virava a Rego Freitas. O homem que espreito pelo desejo envolvido em seu silêncio sem sonho repelia o contraponto de nosso desconhecimento por ser desfeito. Tive nessa noite de anjo enorme vontade de bater-lhe a porta, o motivo era a luz acesa num canto num mar de andares coalhados de apartamentos sem vida na madrugada silente. Esvoaça na canção esperança, no dia o retorno da aurora que nada traz além da luz aparente do Tempo. Todo anseio antecede imensurável sofrimento, ah! Esse clichê é tão apropriado quanto a citação tirada dum filminho idiota assistido com um namoradinho cretino: “Sexo é como supermercado, exageram no valor, é muito empura-empurra e você ainda sai com muito pouco”, era “Shirley Valentine”, algo que jamais assistiria não fosse o namoradinho sazonal como o tesão idiota que nos assola numa primavera colorida.  Estava procurando ossos para roer enquanto a corda esticava num vazio sem fim depois das horas escrevendo um texto razoável. 

Aguardo um mudo que fale dentro de mim, responda num repente de coragem além da gagueira metafísica e xaporada terapêutica que me servem menos que umas quatro taças de vinho tinto. Tempo é duração, percepção, Deus está “continuum”, meus passos por São Paulo tinham a tragicidade lentificada de Gorécki, Arvo Part, esses europeus orientais que ressoam mesmo no outono em final de veranico brasileiro. Sinto-me agora, agora mesmo como o amante visitando locação de um amor desconhecido.

2 comentários:

  1. Ah.. Inês é morta... Sem memória para a explosão do sentir retido na ânsia da leitura de tão precioso texto.!
    Meu amor por ti é eterno.Como eternos somos.
    Beijo

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