![]() |
Ilustração de Conrad Roset |
Por Marina Ruivo
Conheci
Sabina Anzuategui há apenas alguns meses, assim que comecei a dar aulas na
Faculdade Cásper Líbero. Fui aos poucos sabendo o nome dos colegas, conversando
com eles, fazendo amizades, porém meu horário e o de Sabina coincidem poucas
vezes e eu a vejo algumas vezes na semana somente. Em verdade, não tínhamos nos
falado até outro dia, ela me parecia bem tímida e nós apenas nos
cumprimentávamos a distância com um breve oi tudo bem.
Mas
quando soube, por outros professores, que ela era roteirista e escritora, puxei
conversa assim que a vi novamente. Sabina, muito simpática, então me presenteou
com este O afeto ou caderno sobre a mesa,
publicado em 2011 pela 7Letras. Já ao ler a contracapa me interessei: uma
personagem feminina que desejava se matar e que fala de seu desejo de forma
tranquila e quase doce. Mas, mais que o drama de uma suicida, a leitura do
romance me levou à minha própria infância nos anos 1980.
Sabina
consegue não apenas recriar de forma rica e detalhada uma época, como – e isso
é o que mais me fascinou – consegue criar o olhar da criança para o mundo e
tudo que a cerca, num livro que não é direcionado para crianças. É um livro
para adultos que consegue trazer com maestria o olhar infantil diante dos pais,
do irmão, da melhor amiga.
A
autora domina esse olhar de forma tão preciosa que abre as comportas de nossa
memória de crianças. Ela recupera esse olhar com suas cores, seus medos, seus
anseios. Sem preconceitos nem o julgamento que o adulto poderia fazer. Assim,
por exemplo, não há politicamente correto na infância de Denise, a narradora e
protagonista.
Denise
morava num condomínio com dois edifícios numa cidade paranaense. O seu prédio
era o dos apartamentos menores, o outro, chamado Colibri, tinha os apartamentos
maiores, das famílias mais abastadas. As amigas da menina eram todas do
Colibri, e era quase sempre ela, Denise, que as visitava. Havia uma menina,
porém, que morava no mesmo prédio que o seu e que despertava curiosidade e
certa afeição: Juliana, uma mulata, filha de uma negra que morava com um homem
branco que, diziam, teria sido antigamente seu patrão. Havia uma interdição
entre as crianças no sentido de não ter amizade com Juliana, a que era
diferente, e isso sem que nenhum adulto falasse algo diretamente para elas.
Denise só fura tal interdição quando sua melhor amiga, Paula, se afasta dela,
envolvida que agora estava com meninas mais velhas e de novas turmas. Mas,
assim que Paula retoma a amizade, Denise deixa de frequentar a casa de Juliana,
de tomar café da manhã na casa da amiga e de com ela fazer a parte do trajeto
que era comum para que cada uma fosse para sua escola. Aos poucos, nem mais
fala com Juliana, sentindo um pouco por isso, é fato, mas apenas um pouco. Na sua
cabeça, era mais que certo retomar a amizade com Paula, e ela sabe que a antiga
amiga não aceitaria a presença de Juliana – e é assim que agimos quando
crianças, e é esse olhar que Sabina consegue recuperar, sem colocar um
personagem adulto dando bronca na menina e mostrando seu erro. Não é preciso
nada disso para que se crie a beleza da ficção e sua transcendência.
O
modo como Denise olha para a mãe e compara-a à mãe das amigas é especialmente
incrível – e é também assim que fazemos quando crianças: amamos nossas mães,
mas há muitas coisas em que achamos que a mãe dos outros é mais legal (e, em
outras, mais chata). E quando a mãe de Denise vem tentar assistir desenho com a
filha e o irmão? Só o que os dois querem é que ela pare de perguntar as razões
do que ocorre e os deixe ver o desenho em paz.
Há
um acontecimento da vida dos pais que se faz presente desde a primeira página
do livro: a separação dos pais, que durou pouco mais de um ano. O livro de
Sabina constrói também muito bem o olhar da filha a respeito e as sensações
variadas que ela tem diante do fato – e da notícia de que o pai havia
engravidado uma moça lá no Norte, para onde tinha ido trabalhar e, como ela
depois fica sabendo, repensar o casamento.
Mas
esses episódios – e o filho que o pai não teve, pois a moça o perdeu com oito
meses de gestação – não parecem ter se ligar de maneira profunda à fase adulta
da protagonista. A única coisa eu não me pegou por completo em O afeto... foi essa espécie de
descolamento que senti entre a Denise adulta, que conhecemos ao início e ao
final da obra, com algumas rápidas aparições no meio, e a Denise menina. A que
me envolveu e deliciou foi a Denise menina, e a ligação entre elas não me
pareceu completamente delineada.
O
drama da Denise adulta – a falta de vontade de viver, apesar do casamento com
um homem a quem amava e admirava, do emprego de que gostava, do dinheiro e da
casa imensa em que morava – parece clamar pelo nascimento de outra história, de
um livro só para si. Enquanto isso, Denise menina vai figurar na minha relação
das personagens femininas que mais me seduziram. E agora é correr para ler o
romance anterior da autora, Calcinha no
varal, publicado em 2005 pela Companhia das Letras. E ver e rever filmes
roteirizados por ela, como Desmundo, A casa de Alice, e muitos mais,
acompanhando ainda os ótimos e muito criativos exercícios de criação literária
que ela posta na sua página no Facebook, Exercícios
de criação literária, e seu blog, Limas
da Pérsia.
0 comentários:
Postar um comentário
Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.