quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Ilustração de Conrad Roset

Por Marina Ruivo

Conheci Sabina Anzuategui há apenas alguns meses, assim que comecei a dar aulas na Faculdade Cásper Líbero. Fui aos poucos sabendo o nome dos colegas, conversando com eles, fazendo amizades, porém meu horário e o de Sabina coincidem poucas vezes e eu a vejo algumas vezes na semana somente. Em verdade, não tínhamos nos falado até outro dia, ela me parecia bem tímida e nós apenas nos cumprimentávamos a distância com um breve oi tudo bem.

Mas quando soube, por outros professores, que ela era roteirista e escritora, puxei conversa assim que a vi novamente. Sabina, muito simpática, então me presenteou com este O afeto ou caderno sobre a mesa, publicado em 2011 pela 7Letras. Já ao ler a contracapa me interessei: uma personagem feminina que desejava se matar e que fala de seu desejo de forma tranquila e quase doce. Mas, mais que o drama de uma suicida, a leitura do romance me levou à minha própria infância nos anos 1980.

Sabina consegue não apenas recriar de forma rica e detalhada uma época, como – e isso é o que mais me fascinou – consegue criar o olhar da criança para o mundo e tudo que a cerca, num livro que não é direcionado para crianças. É um livro para adultos que consegue trazer com maestria o olhar infantil diante dos pais, do irmão, da melhor amiga.

A autora domina esse olhar de forma tão preciosa que abre as comportas de nossa memória de crianças. Ela recupera esse olhar com suas cores, seus medos, seus anseios. Sem preconceitos nem o julgamento que o adulto poderia fazer. Assim, por exemplo, não há politicamente correto na infância de Denise, a narradora e protagonista.

Denise morava num condomínio com dois edifícios numa cidade paranaense. O seu prédio era o dos apartamentos menores, o outro, chamado Colibri, tinha os apartamentos maiores, das famílias mais abastadas. As amigas da menina eram todas do Colibri, e era quase sempre ela, Denise, que as visitava. Havia uma menina, porém, que morava no mesmo prédio que o seu e que despertava curiosidade e certa afeição: Juliana, uma mulata, filha de uma negra que morava com um homem branco que, diziam, teria sido antigamente seu patrão. Havia uma interdição entre as crianças no sentido de não ter amizade com Juliana, a que era diferente, e isso sem que nenhum adulto falasse algo diretamente para elas. Denise só fura tal interdição quando sua melhor amiga, Paula, se afasta dela, envolvida que agora estava com meninas mais velhas e de novas turmas. Mas, assim que Paula retoma a amizade, Denise deixa de frequentar a casa de Juliana, de tomar café da manhã na casa da amiga e de com ela fazer a parte do trajeto que era comum para que cada uma fosse para sua escola. Aos poucos, nem mais fala com Juliana, sentindo um pouco por isso, é fato, mas apenas um pouco. Na sua cabeça, era mais que certo retomar a amizade com Paula, e ela sabe que a antiga amiga não aceitaria a presença de Juliana – e é assim que agimos quando crianças, e é esse olhar que Sabina consegue recuperar, sem colocar um personagem adulto dando bronca na menina e mostrando seu erro. Não é preciso nada disso para que se crie a beleza da ficção e sua transcendência.

O modo como Denise olha para a mãe e compara-a à mãe das amigas é especialmente incrível – e é também assim que fazemos quando crianças: amamos nossas mães, mas há muitas coisas em que achamos que a mãe dos outros é mais legal (e, em outras, mais chata). E quando a mãe de Denise vem tentar assistir desenho com a filha e o irmão? Só o que os dois querem é que ela pare de perguntar as razões do que ocorre e os deixe ver o desenho em paz.

Há um acontecimento da vida dos pais que se faz presente desde a primeira página do livro: a separação dos pais, que durou pouco mais de um ano. O livro de Sabina constrói também muito bem o olhar da filha a respeito e as sensações variadas que ela tem diante do fato – e da notícia de que o pai havia engravidado uma moça lá no Norte, para onde tinha ido trabalhar e, como ela depois fica sabendo, repensar o casamento.

Mas esses episódios – e o filho que o pai não teve, pois a moça o perdeu com oito meses de gestação – não parecem ter se ligar de maneira profunda à fase adulta da protagonista. A única coisa eu não me pegou por completo em O afeto... foi essa espécie de descolamento que senti entre a Denise adulta, que conhecemos ao início e ao final da obra, com algumas rápidas aparições no meio, e a Denise menina. A que me envolveu e deliciou foi a Denise menina, e a ligação entre elas não me pareceu completamente delineada.

O drama da Denise adulta – a falta de vontade de viver, apesar do casamento com um homem a quem amava e admirava, do emprego de que gostava, do dinheiro e da casa imensa em que morava – parece clamar pelo nascimento de outra história, de um livro só para si. Enquanto isso, Denise menina vai figurar na minha relação das personagens femininas que mais me seduziram. E agora é correr para ler o romance anterior da autora, Calcinha no varal, publicado em 2005 pela Companhia das Letras. E ver e rever filmes roteirizados por ela, como Desmundo, A casa de Alice, e muitos mais, acompanhando ainda os ótimos e muito criativos exercícios de criação literária que ela posta na sua página no Facebook, Exercícios de criação literária, e seu blog, Limas da Pérsia

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