terça-feira, 12 de abril de 2016

Les Enfants qui s'aiment. Paris, 1950 (Maurice Georges Chanu)                 


Por Marina Ruivo


Depois de duas semanas ausente destas páginas, volto hoje a marinar palavras. Estou muito feliz com o retorno a esta Pausa, mas a verdade é que ainda me encontro em compasso de volta após uma viagem feita, a mente meio cá meio lá.

É disso que os fragmentos de hoje procuram falar, como uma espécie de diário, alquebrado, do regresso.


Fácil

Vou ter saudades desse vinho fácil, ah, como vou, dessa alegria quente e de tua boca que me sorria enquanto fraldeávamos aqueles caminhos novos a nossas solas e que, sem perder o inusitado, nos pareciam tão antigos, tão nossos velhos conhecidos. Vinho fácil que escorria por minha garganta e vinha também de ti, teus lábios únicos, os de cima ligeiramente mais para a frente, num contorno desenhado que se dispõe qual coração ao se ligar com os inferiores, coisa rica, bela, cor-de-rosa e completa.

Vou ter saudades de te dizer, às três da tarde: Estoy borracha, rindo e rindo. E passar o dia alegre, o vinho no corpo me enchendo a visão e me dando coragem de falar meus medos, minhas besteiras todas, o quanto sou cruel comigo, inválida. E também meus sonhos de desejo, o campo bom no mar aberto, os frutos na mão e firmes e maduros e sabendo bem aos nossos corpos. 

Não era só o vinho que era fácil. Eram também os livros, esses mesmo livros que nesses últimos dias pouco li, porque os dias eram tão cheios de mundos para ver que quase não dava tempo, mas que eu desejava, desejava, desejava, e me causavam saudades cá dentro. 

Mesmo com pouco tempo e sem muitas condições para lê-los – ah, dava sono e cansaço e muito mais às noites –, eu precisava voltar a eles vez em quando, nas livrarias e alfarrabistas, olhá-los nas montras mas sobretudo nas estantes, e então eles me davam calma para os dedos-olhos, casa. Eu me reconfortava e eles me entregavam de volta um pedaço do meu ser que talvez estivesse perdido em meio a tantos azulejos, mares, descidas e subidas nas pedrinhas do calçamento, e pessoas estranhas, línguas estranhas que eu ouvia e também o medo que às vezes dava, o isolamento, receio de ficar sem pertencimento, ser um estranho, marinheiro só vagando no oceano sem encontrar ninguém e nem mesmo ser reconhecido como marinheiro por outros marinheiros. Ser um corpo vazio errante inerte perdido. Sem vida, sem alma ser. 

Mas quando eu voltava aos livros, ainda que só às capas e títulos e nomes de autores, eu me sentia mais eu de novo, e tinha sempre mais certeza do quanto eles fazem parte de mim. Mesmo em francês me davam esse reencontro, a única coisa é que eu não era ainda plena, havia um traço, um troço, uma barreira a nos separar, não falávamos a mesma língua e talvez nunca eu tenha sentido tanto, e de fato, como minha pátria é minha língua. Onde ela está, eu posso estar e não ser (mesmo sendo) estrangeira.

Mas o impedimento que nos separava cintilava o absurdo daquilo: eles estavam ali, me eram tão próximos, eu os queria mas ao mesmo tempo eles não me adiantavam pois eu não poderia lê-los. Eu estava cortada, ilhada em meio a meus conhecidos e amores. Mesmo aqueles escritores que eu admirava ali me eram outros, inacessíveis, e só posso dizer salve a tradução e os tradutores (que pena ser tão burrita). 

Agora em português, ah, o reencontro era completo, eu podia lê-los se quisesse. Eu podia ler todos eles e isso era delicioso. Eu me enchia de novo, de ar mas não só. De vida, de mim mesma. E assim de quando em quando eu parava tudo, interrompia a sequência de passeios e entrava na minha igreja, minha casa. Me reabastecia, virava eu de novo e podia voltar às ruas, mesmo que ao combate duro, porque há também momentos difíceis inclusive em meio ao monte de maravilhas, esse combate duro da minha alma que tantas vezes se faz minha inimiga e me joga em batalhas, velhas batalhas que corroem meu sangue e me enchem. De olheiras e dores. 

A volta

A volta, a volta. É difícil voltar ao dia a dia das coisas que não querem sair do lugar e exigem ser cuidadas, amassadas, viradas de lugar, cumpridas a prazo no prazo. 

Onde os contornos meus? Onde o que sou? O que sou, fui? O que fui, sou? Parece pura bobeira, mas não sei se é só besteira furta-cor, frutacor da delícia do cotidiano que pode ser também. Mas é o odor da dor que me chama de volta aos horários rimados, os dias marcados, o calor que fere os miolos e me dói a vista e atinge os maxilares. 

É outono aqui, mas faz um calor dos diabos. Nenhum anjo pode gostar de uma temperatura dessas, que dirá nós, que não somos anjos? O sol é lindo mas a terra é seca. Não há árvores nem sombra. Não há repouso para este sol que trabalha diariamente, não há repouso para as contas que esperam ser pagas, nem para o saldo negativo do banco. Elas não querem saber de calor, nem de dor – na cabeça ou nos membros. Não entendem deste tempo cá dentro que é preciso escutar para poder prosseguir.

O bom é que meu caderno sorri branco e me chama, vem.


1 comentários:

  1. às vezes, creio eu, até mesmo um saldo negativo na conta no banco, pode ser uma preciosa âncora, algo para trazer de volta o trivial da vida da gente, na que confundimos como pátria. A própria língua que era portuguesmente nativo, deixou de sê-lo nos ouvidos e língua deformadas agora por essa viagem ao estrangeiro Nunca mais. Agora somos estranhos numa terra estranha, que julgávamos nossa de berço. -----Belo o seu texto, impecável transmissão das emoções de uma viajora. Gostei bastante. (PS: tótó é um pseudonimo do Eugen)

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