quarta-feira, 20 de abril de 2016

Pôr do sol na Vila Madalena, hoje (Márcia Costa)

Por Marina Ruivo


As nuvens compunham linhas no céu ontem à tarde. Mais do que linhas, formavam a pauta de um caderno celeste. Estendiam-se de uma nuvem a outra, em sequência, várias, uma embaixo da outra, coisa que nunca vi. À esquerda, uma nuvenzona preta, cheia da água que ao final não caiu. À direita uma nuvem clara, fofinha, daquelas de algodão. Ligando uma à outra, ao mesmo tempo sustentando e sendo sustentadas por elas, vinham as linhas, muitas, mais de dez de certeza.

Não pude contá-las, tampouco tirar uma fotografia. Eu dirigia na Marginal Tietê e inda por cima o celular estava aberto no Waze, me dando os caminhos na voz que aprendi, se não a gostar, ao menos a aceitar. Senti pena por não poder registrar o evento, mas logo me resignei e quis pensar que talvez fosse melhor assim. Aquelas nuvens em forma de linhas ficariam em mim de modo mais intenso (justamente?) se eu não as capturasse numa foto, e em mim permaneceriam a beleza intocável daquele evento raro e os fiozinhos de nuvens perfeitamente alinhados, branquinhos branquinhos, esperando alguém a escrever no céu, alguém que começasse a juntar palavras de vapor d’água e as pendurasse lá, nas nossas cabeças.

Sem ter como fixar para sempre o quadro, não fiz mesmo nada. Apenas continuei a dirigir no trânsito àquela altura ainda locomovente, ansiando como nunca um ar-condicionado e procurando prolongar o mais possível o maravilhamento do inusitado.

Eu gosto da imagem, gosto sim. Já tentei desenhar e, quando criança, desenhava bastante e julgava que ia ser estilista, pois adorava desenhar moças com roupas diferentes, bonitas, os cabelos compridos, com diversas cores e tudo o mais. Fiz um curso lá no MAC, no Ibirapuera, que era uma delícia, a professora levava a gente para ver as obras de arte do museu e as várias existentes no Ibirapuera e nós fazíamos variações infantodoidas em cima delas. Eu fiz uma “A negra” até que procurando alguma exatidão, mas jogando um cor-de -rosa no fundo que refulgia. Fazíamos desenhos de observação das esculturas espalhadas pelo parque, das plantas, e também desenhávamos nossos corpos em uma imensa folha de papel-pardo. Houve até uma exposição, eu lembro (e tenho fotos), eu devia ter uns 9 ou 10 anos.

Depois, mais tarde, no Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro, fiz aulas de escultura, de trabalhos com argila, e tenho ainda guardado o rosto – e era só o rosto, sem corpo, solto no mundo – do homem de boina que criei de papel-machê, um homem que não ganhou nem mesmo um nome, vítima da minha indecisão (Dirceu? Tomás?), mas que eu sentia que era atravessado por toda a dor da existência, uma dor que àquela época eu apenas intuía, uma dor-literatura que vinha de Álvares de Azevedo, ah, queria eu levá-la pra cabeça do personagem que eu tinha feito com as mãos, o homem de boina viveria com toda a intensidade o drama do mundo e, mais, o drama da passagem do tempo – eu adorava pensar sobre o tempo e antecipar sua inconcretude tão material. 

Havia ainda as sessões de desenho com modelo vivo. Essas eram aos sábados. Havia muitas pessoas que vinham, e elas eram de todas as idades. Bastava chegar junto, não era necessária inscrição prévia nem regularidade. Podia-se ir quando fosse possível. Era levar seu papel, seu lápis e borracha e fazer quantos desenhos quisesse da mulher negra e de corpo arredondando que ficava lá, nua, imóvel, com seus cabelos compridos e mudando de posição a cada sei lá quanto tempo. Eu olhava a barriga dela e era uma barriga visível, uma forma feminina saliente e bela. Ela tinha o corpo maduro e gasto de uma mulher comum, real, e era também isso que a fazia mais apta a ser nossa modelo, nós treinávamos curvas e traços. Era também isso que a fazia mais bela, mas isso só fui entender bem depois. 

Houve um tempo, acho que intermediário entre o curso no Ibirapuera e os cursos no CCSP. Quis aprender fotografia e pedi ao meu pai que me ensinasse. Jornalista, ele sempre gostou de fotografar e tinha uma máquina boa, daquelas em que tudo era regulável. Estou falando dos tempos antes das máquinas digitais, claro. Ele então começou a me ensinar e saíamos os dois pelas ruas e parque e lugares para que eu aprendesse como funcionava a abertura, a velocidade, o foco etc. Eu me divertia muito e tentava ver se era por lá, por aquelas imagens, que de alguma maneira sentiria suprido o desejo de dar vazão a algo que eu nem sabia nomear – e ainda hoje não sei, é pena.

Já maiorzinha, passei a rodar as ruas do bairro com a máquina, muitas vezes carregada com um filme PB, procurando capturar ângulos, pessoas, rostos, angústias, paisagens. Depois parei, nem sei como foi. Aí vieram as máquinas digitais, essa droga de só apertar um botão e não conseguir captar o momento desejado, e foi há pouco que ganhei uma máquina novamente, como um presente inesperado cheio de amor e lindo, voltando a exercitar esse olhar que me dá tanto prazer.

É engraçado, mas apesar de tudo sei que não sou fotógrafa. Talvez por isso não tenha sofrido quando não pude captar as nuvens-linhas.

A mulher que não sou e o balanço na estrada. Ou no parque, de madrugada, longe das vistas de todos, apenas o ir e vir do corpo ajustando os pensamentos, ajudando a encontrá-los, a calma, a confiança, o centro. O céu bem perto vai engolir pra sempre as cordas de aço da culpa. Vai, não é? A vida que vivi, é, foi ela que vivi. Por que parei tanto tempo de escrever?, me pergunto a cada vez que o balanço sobe. Ele desce e a resposta nunca chega.

Os grafiteiros sonham muros grandes e lisos, prontos pra receber uma pintura fresca e boa, com desenhos que irão enfeitar, brilhar, fazer pensar. 
E eu?
As linhas continuarão lá no céu?

0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.