sexta-feira, 13 de maio de 2016

Stella, 1904 (Céline Laguarde)


Por Marina Ruivo


O sono não vem. Não vem, não vem, não vem. Simplesmente não vem. Antes que fique muito irritada, procuro encontrar um caminho de pensamento que me conforte e possibilite dormir. Tudo certo, isso é o que todos fazemos quando não conseguimos adormecer. Só que também sabemos que isso é pura enganação, porque muitas vezes nessas horas o que a gente faz é se enroscar mais no pensamento e, em vez de relaxar e dormir, se acelerar e enervar. Ou a gente revira em algo que está incomodando, ou então até descobre coisas angustiantes que nem estavam se manifestando na luz do dia.

E foi numa noite dessas, outro dia mesmo, que me pus a pensar que a cada vez que me fazem a pergunta simples e banal que é “E o que você faz?”, ou “Com o que você trabalha?”, eu gaguejo, hesito, olho para baixo, depois lá para cima, e então começo, sempre balbuciando: “É que eu estou dando aulas”, ou “Eu faço revisões para editoras, mas...”, ou ainda “Estou fazendo freelas para editoras”, e aí muitas vezes tenho que explicar um pouco do que significa fazer revisão de textos, preparação de originais etc. Muita gente do meu prédio pensava que eu não trabalho, já que fico apenas em casa. Claro, ela sai vez ou outra para levar ou buscar o filho na escola, deve contar com uma pensão polpuda que permite que ela fique à toa entre as quatro paredes, mas mesmo assim, o que será que ela tanto faz lá dentro? Por que não está aqui embaixo, conosco, tomando sol e conversando sobre crianças e bebês e sei lá mais o quê? É, na casa que morei antes os vizinhos todos se impressionavam também e uma hora tinha aquelas mais ousadas que perguntavam se, afinal de contas, eu não trabalhava não. 

Só que já estou me desviando. Não quero pensar agora no trabalho do revisor ou do preparador, nem no quanto ele é desconhecido num país de tão raros leitores. Onde eu estava mesmo? Ah, sim, na minha dificuldade de responder a uma pergunta tão boba, seja ela feita por alguém, ou então esteja presente num formulário qualquer que eu tenha que preencher e assinar, na porta de um hotel ou numa ficha para abrir conta em banco. Nessas fichas, muitas foram as ocasiões, antigamente, em que eu colocava: “pesquisadora”, porque estava fazendo o mestrado ou o doutorado, e aí geralmente me enquadravam na categoria dos profissionais que fazem pesquisa de mercado. De boa. Não era bem a verdade, mas estava respondido e eu tinha me livrado. Se a pessoa entendeu errado, fazer o quê? E, aliás, eu já fiz pesquisa de mercado, anos e anos atrás.

Agora, mesmo no ano passado, quando eu estava lecionando para uma faculdade particular, eu não me sentia completamente à vontade para dizer, assim, com todas as letras e em caixa alta: EU SOU PROFESSORA. Claro que muitas vezes dizia isso, até para simplificar, assumindo uma condição essencial que, em verdade, não sinto cá dentro. Mas aí as pessoas muitas vezes perguntavam de que eu era professora e essa também era uma pergunta banal, e eu explicava que de língua portuguesa, embora minha área mesmo fosse a literatura e, conforme o papo, eu até contava que tinha seguido uma trajetória de pesquisadora acadêmica, embora agora esteja fora da academia, mas isso também não era algo que me permitia responder simplesmente “sou tal coisa”, ou “sou aquilo outro”.

Acho que nessas horas, e apenas nelas, eu dava tudo para ser mesmo alguma coisa e poder dar uma resposta rápida e objetiva, como “sou dentista”, “sou psicóloga”, “sou veterinária”, ou “sou engenheira química”. Só que eu nunca sou, eu apenas estou, só estou.

E foi nesse ponto, mais ou menos, quando eu me dei conta do quanto eu estive já várias coisas, parece que sempre numa preparação para algo que nunca vem e que talvez eu mesma não saiba o que seja, foi aí virando e me revirando de um lado para outro da cama, em meio a essas bobagens todas, que me veio à mente uma cena lá de trás. Meu pai indo comigo para a área de serviço, onde tinha bastante claridade e ventilação, e pacientemente tentando decifrar para a menina de nove ou dez anos que eu era o que significava o assombroso verbo “to be” do inglês. Até então eu simplesmente não entendia, podia a professora fazer o que fosse que não entrava na minha cabeça. O verbo “to be” era uma coisa escabrosa, enigmática, inexplicável, a começar do seu começo: como um verbo pode ser um verbo e começar com duas letrinhas tão estranhas, “to”, que a gente tinha que falar fazendo som de “u” mas sem carregar muito no “t”? E além de tudo ser um verbo e, na sua forma conjugada, não ter simplesmente nem umazinha aparição de sua forma original? Ao contrário, só há “am”, “is” e “are”! Ora, em português, se eu falo do verbo “amar” e vou conjugar, ele aparece em todas as pessoas: “eu amo, tu amas” e por aí afora. Agora o tal do “be” não aparecia nem no “I” nem em nenhum outro lugar, nem tampouco o “to”, mais misterioso ainda.

Naquele dia meu pai ficou comigo bastante tempo e, não sei o que ele fez, porque infelizmente não me lembro, mas ele conseguiu me fazer começar a decifrar o mistério, a mágica do verbo “to be”, que é verbo de verdade apesar de todas as suas estranhezas e que, ainda por cima, pode ser traduzido de duas formas. Ele tanto significa “ser” como “estar”! Incrível!

Os pensamentos vão ficando mais baralhados, mas talvez esta minha dificuldade lá atrás com o “to be” tenha algo de existencial mesmo, vai saber. Eu sempre estou do lado do “estar”. Fujo tanto do ser, só que o estar não faz que eu me sinta bem. Ao contrário. Estou sempre pesarosa por apenas estar, e ainda por cima estar algo que não é exata e plenamente o que eu queria ser. Será que a saída é simplesmente “be” em cada coisa, seja como professora, seja como revisora, seja como essa outra coisa que eu ainda busco para mim?

O dia seguinte vai ser de muitas coisas por resolver, banais, cotidianas, mas que tomam muito tempo nesta cidade cada vez mais sugadora que é São Paulo. Mas ainda vêm à mente umas palavras de Hahnemann, o fundador da Homeopatia; para ter saúde é preciso que cada um viva de acordo com os mais altos fins da sua existência. Será que ainda não sei os meus, quase chegada aos quarenta anos? Ou será que sei mas apenas não caminhei o suficiente para eles, não tive a coragem necessária, não dei o salto, desviei-me por aí e me perdi? Por outro lado, sei que não se trata apenas de atividade profissional, são altos fins, no plural, e não uma coisa só. Devo ter conseguido nessa altura certo sucesso em me tranquilizar, já que devo ter dormido por aí, não me lembro de mais nada depois. Acho apenas que ainda me vieram à mente, de forma bastante vaga e misturada, ensinamentos budistas sobre nosso valor como pessoas, independentemente do que fazemos, sejamos nós isso ou aquilo outro e...................................................................... 

(E agora sussurro baixinho, para acabar, quase em oração. Rascunho estas linhas confusas que me lançam ao mar e, talvez, na direção, sempre e sempre incerta, daquilo que eu sempre quis ser, em um to be completo, de ser e estar.)




1 comentários:

  1. Querida Marina,

    Me identifiquei bastante com os seus sentimentos, durante muitos anos, por ter um cargo público, eu não titubeava em dizer "professora", mas às vezes também colocava nos formulários historiadora, mas explicar o que faz um historiador é o mesmo que explicar o que é revisão ou preparação num país de poucos leitores.
    O mais simples é quando estou sem trabalho, então, estou desempregada, entretanto, é embaraçoso, até vergonhoso estar nessa condição e não ser nada, mesmo sendo professora formada. Sabe, nisso de ser e estar, tenho medo de que não tenha um lugar nesse mundo.

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