terça-feira, 27 de junho de 2017

Alessandra Hogan

Por Jean Pierre Chauvin


Girou a chave, uma, duas voltas, e murmurou: hoje será diferente. Recontou: 32 degraus de granito e, antes que chegasse à porta de saída, viu-se impedido de caminhar. Será uma teia de aranha gigante? Redoma de vidro tão limpo que...? Não podia dar passo a mais. Recuou um lance de escada. A meio caminho pensou: ora, como assim? E o direito de ir-e-vir? Decidiu argumentar contra o espírito que botara o anteparo em sua trajetória. Sussurrou: olá? Alguém aí? Silêncio. Disse: alô? Alguém me escuta? Gritou: ah, é assim, né? Observe! Voltou para a kitchenete de 19 metros exatos, catou a banqueta de madeira, com feição de violência. Apontou, mirou, despejou potência. O móvel voltou com a mesma força do arremesso. Sangue na testa. Protestou: isso não fica assim! Você vai ver! 32 degraus acima, lá está ele fazendo curativo – álcool em gel e “band-aid”. De quebra, alinhou a sobrancelha direita. Via das dúvidas, desferiu golpes de pente nos cabelos em leve desalinho. Esvaziou a caixa de ferramentas com estrondo (eram 6 e 13 da manhã). Desceu os dois lances de escada. Gritou no ritmo do martelo: Es-sa coi-sa vai que-brar! Nada, olha só. Se era vidro não fazia sentido: o martelo afixado feito anúncio. Sobe outra vez. Em minutos o antiperspirante já perdia o efeito das 24 horas de proteção aos narizes alheios. Era o que faltava! brada ele. Muda de parecer: Talvez tirar uma soneca… Mais tarde, haverá mais gente a driblar a barreira invisível. Repensa: não! Ora, essa! Deixe disso, rapaz! Torna a descer os 32 degraus, munido do extintor de incêndio (Sim, como não pensei nisso antes? A reação química pode provocar uma espécie de curto-circuito… Claro, deve ser um dispositivo eletrônico de última geração). Camisa amassada, punhos mal dobrados, investe contra a grade de vento. Ainda nada. O pó se espalhou sobre seus cabelos e só evidenciou a superfície demasiado retilínea. Mira os lances de escada, pareciam muitos mais, e decide esperar até que um dos vizinhos apareça. Quem sabe, novidade condominial? Um novíssimo dispositivo para proteger os homens de bem e afastar os vadios que não querem trabalhar, mas não dispensam uma cachaça... (e isso não era exclusividade de dias mais frios). E esperou. 

Não sabia há quanto tempo aguardava pela voz conhecida, pelo gesto compadecido de quem o visse ainda ali, amassado e ainda salpicado de branco carbônico, impedido de honrar o ponto eletrônico e prestar novos serviços de inutilidade mal remunerada ao chefe. E esperou. 

Por volta das 8h47, seu Alceste do 34 sorriu, emendando: o que faz, estacionado nos degraus? Vexado com a aparência incomum, respondeu: havia sido impedido de trabalhar devido a alguma força misteriosa. Cheguei a pensar que eram forças ocultas! Hahaha!, compreendeu o velho. Pediu licença e seguiu normalmente até a porta. Voltou-se ao vizinho mais jovem supondo ser brincadeira de mau gosto. Irritado, vai até a grade invisível. A passagem continua bloqueada. Ora, ora… A coisa é comigo… Seu Alceste deve ter ido até a padaria. Desjejum. 

18 lances de escada e está novamente em casa, testando a passagem nos quatro cômodos. Muda de estratégia. Desce até o saguão de entrada (sim, porque “de saída” não poderia se chamar, àquela altura) munido de uma jarra de água, cheia até a boca. Pensa, calcula um modo de não se molhar. Chuá. O líquido escorre. 50 centímetros depois ferve e evapora na chapa que não se via. Indignado, recorda-se da noite mal dormida. Reconsidera a hipótese de descansar mais um pouco. O chefe entenderia: era funcionário assíduo, pontual, exemplar. Tecia grandiloquências enquanto concluía as tarefas mais simples. Eis que… Alceste está de volta. Tomou o café mais rápido, dessa vez. O velho se aproxima do local onde a barreira invisível decidiu ficar. Já vem ele subindo, sorridente. Questiona por que o mais jovem continua ali: Hoje não tem greve. O dia está bonito e você não tem motivos para desistir. Coragem, homem! O mais jovem gesticulou como forma de protesto brando. Mas, fosse pelas subidas e descidas arfantes, fosse pelo aniquilamento moral, poupou a si mesmo e aos ouvidos intolerantes do velho. Assentiu, resignado: Sim, deve ser. Botou no rosto o sorriso mais esticado e parou rente ao local onde imaginava estar a barreira intransponível. Continuava a sorrir, puro cãibra, feito retrato de formatura. A roupa amassada, cabelo em desalinho, calça manchada e o sapato úmido. Armado de dentes, chegou até a porta de entrada. Deu-se conta do enigma. Devo ser muito antipático para provocar a ira dos deuses, que botaram esse monolito kubrickiano transparente no saguão do meu prédio! Bastou sorrir que… Mas, bem, agora preciso me arrumar. 

Sempre a sorrir, fez o caminho de volta ao lar de 19 metros retangulares. 

A barreira invisível havia se instalado na porta do apartamento. Seu Alceste, que descia pela segunda vez, convidou: já que não se animara a trabalhar, experimentasse o seu bolo de fubá. É tão bom, modéstia às favas, que é capaz de derrubar uma muralha de mau humor.

(21.VI. 2017) 

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