terça-feira, 15 de agosto de 2017




Por Robson Di Brito


As diferentes vanguardas europeias que entraram no país trouxeram consigo suas próprias características, estéticas e peculiar visão de modernidade. O Expressionismo espalhou extremos emocionais, inquietação e espiritualidade, assim como o Cubismo em seu quebradiço emaranhado de palavras dispostas a conceber ora uma imagem, ora um sentimento. E o Futurismo, que aqui chegou, incumbiu a linguagem de uma força política alicerçada em uma espontaneidade no claro intuito de exprimir a ideia de velocidade e violência. Essas linguagens artísticas por vezes se misturaram, por vezes nem tanto. De toda maneira auxiliaram o movimento literário modernista brasileiro, nos infantes anos da década de 20, ao criar um dialeto literário próprio; verdadeiras portas de entrada para entendermos as faces temáticas e estéticas, muito importante à literatura brasileira do século XXI. A obra de Erre Amaral, “Do mundo e suas delicadezas,” 2017, publicada pela Penalux, realiza a junção proposta pelo movimento modernista: unir por ligamento das vanguardas europeias os movimentos literários que a antecederam como obra artística literária. 

O que chama a atenção no poema-épico é a capacidade do escritor, ensaísta, teórico e poeta em conjugar na sua linguagem uma escassez e um excesso de sentimento, dualidade encontrada na literatura brasileira desde o movimento Barroco. Seu olhar à personagem Pretinha emancipa da miséria que são acrescidas as personagens e a personagem principal no ambiente – A vila do Biribiri, esta que está incrustada no Parque Estadual do Biribiri na Serra do Espinhaço em Minas Gerais, ganha áreas de lugar universal. Pois ali reina e ganha força os personagens puros e erotizados que vibram ao sabor do tempo, não demarcado pelo autor, mas presente. Entretanto se faz impresso nas cicatrizes que Pretinha carrega na alma e nos lugares por onde tatua sua passagem no decorrer de sua existência.

Em síntese, a obra literária divide-se em duas partes e narra a epopeia vivida pela protagonista, desde sua infância até o derradeiro destino da vida adulta. Nomeadamente uma ficção, mas supostamente inspirada em Denise Marques da Silva, a quem Erre dedica seu livro ‘in memoriam’. Novamente o autor não nos revela certeza quando ao período histórico em que a narrativa se passa, mas dá pistas, visto que os resquícios da escravidão que pairou sobre o sertão mineiro no século XIX respingam em sua criação. Obviamente que o leitor atento sentirá nisto o sabor da narrativa épica, não como a genealogia mítica proposta por Hesíodo, ou as sangrentas guerras narradas por Homero, e tão poucas a melosidade quase romântica de Camões, mas um pouco próximo das ‘borboletas que brincam ao luar no dourado do espaço’, nos versos épicos de Castro Alves.

Nas circunstâncias sociais – quase condoreiras – vividas pela personagem central percebemos naquilo que o geografo afro-brasileiro Milton Santos afirma como “a força dos fracos é o seu tempo lento”. Em “Do mundo, suas delicadezas,” testemunhamos um passar do tempo além de lento. E é neste jogo de ter e não ter tempo que as personagens sobrevivem por meio de uma força insuspeitada, em que essa força dos fracos se revela na ação humana. Em especial, a vicissitude social da mulher negra que, representada por Pretinha, vivencia na experiência que a escassez a lega, como no abandono da mulher negra e sua sobrevivência com os filhos seus.

A trama foge ao convencional dos atuais discursos acerca da mulher, e possibilidade muito mais que a construção de uma narrativa social, ou um balançar de bandeira ilustrando sua obra em panfletária. Para si a mulher é um ser, não objetivado (santa ou puta) como propunha o movimento romântico, mas um ser que vive. Não é de estranhar que a intertextualidade presente no capítulo “A carne mais barata do mercado” nos lance aos braços sonoros de Elza Soares. Em sua gênese de fundo e forma, temática e estética, endereça uma proximidade com o outro. E este outro é feminino e estimula uma invenção de novos modos de compreender o mundo e suas infindas delicadezas.

Será óbvio ao leitor encontrar as nuanças que o romantismo proporciona a todo romance, marcadamente impregnante desde Madame Bovary por Gustave Flaubert, em especial nas páginas inicias na qual identificamos quase um clamor ou recordação de pai, que se faz ouvir nas palavras amorosas da narradora, e que também nos remete a uma declaração de uma apaixonada. Entretanto, o autor nos surpreende com a busca por uma inovação estética. O livro será nulo se não lido da capa ao infinito. Visto que Erre Amaral brinca e testa a atenção do leitor. Principia com seu título “Do mundo e suas delicadezas,” sem precisar um fim, e assim o faz com toda a obra. Desta maneira, o leitor inicia o miolo do romance já da capa. Não há um The End (não, isto não é spoiler) ou momento que o autor nos afirma que acabou, mas sugere que as páginas continuem a ecoar pelo vácuo do infinito, assim como o mundo, as delicadezas ou a própria existência.

Por narrar em estrutura poematizada, sem perder a fluência que a prosa impõe, aos menos ávidos em poesia passará despercebido a falta do ponto final. Mas com certeza chamará a atenção o excesso de vírgulas que os versos possuem. Além deste quase abolir de pontuação frasal – herança do futurismo –, os expressivos adjetivos e advérbios, que constroem a fluência do narrar por suas conjugações, demonstram claramente que a pontuação está anulada na continuidade do estilo vivo. Inovação que não o desvincula da influência construída por Guimarães Rosa, com seu traquejo coloquial na terceira geração modernista. Claramente que o convite ao parnasianismo se faz, sem contudo cair no abismo das formas fixas, em especial sonetistas em métricas alexandrinas e decassílabos perfeitos como templo gregos, que ecoam de si rimas ricas e raras. Ou sobrepujar-se do excesso de símbolos herméticos e vagos que sugerem demasiadamente ao leitor um vagar colorífico ao qual o simbolismo se finda. “Do mundo e suas delicadezas” bebe destas fontes e brinca com as caraterísticas primárias destas manifestações literárias.

Contudo, mesmo imbuído em uma estética irregular nas estrofes e versos, desvirtuando a formalidade parnasiana, e salpicando aqui e ali com simbologias sem divagar ao vazio ou afixar-se na palavra ora seca, ora oca ou ora cheia do modernismo, o autor (re) moderniza a literatura. Isso porque se constrói na obviedade que a liquidez contemporânea impele, por sua fluidez de assuntos que muda a cada estrofe, e entretanto não deixa que o leitor se perca ou fuja da atmosfera que a trama possui. Assim, o romance é possessivo, pois não permite que o leitor se perca ou fuja de sua verossimilhança.

Não é de estranhar a ligação que se atribui, aqui, de “Do mundo e suas delicadezas,” e “Caim”, de José Saramago. Neste, o saudoso autor português, em seu jogo estétic,o cria uma narrativa quase desesperada, sufocante, acelerada, violenta e brilhantemente engendrada na releitura do personagem bíblico Caim. Saramago na prosa findou sua obra, na qual ninguém sobrevive à vingança de Caim contra Deus com um explicito enxugamento de pontuação frasal, denotando a influência futurista em sua obra. Já na poesia, “Do mundo e suas delicadezas” nos apresenta em passos largos um fluir narrativo, sem as travas dos pontos. Dessa forma, Erre Amaral se enfileira nas linhas contemporâneas da literatura moderna brasileira, (re) velando os novos passos do pós-modernismo literário brasileiro.

Não nos é omisso dizer que há uma voz literária forte e cada vez mais variada no Brasil, há quem diga que no início da nossa história literária ela estaria muito vinculada a uma realidade bastante ligada ao que vem de fora (estrangeiro), depois enveredou para ênfase nos discursos nacionais. Hoje nossa literatura é antes de tudo uma face expressiva do nosso multifacetado espelho nacional. Se a literatura brasileira dialoga com o que é nosso, ela não é produto de seu contexto, mas ajuda, antes, a produzir o país que hoje chamamos de Brasil, e é este olhar para o país que “Do mundo e suas delicadezas,” nos oferece sem fim.



Robson Di Brito

Robson Di Brito é escritor, letrista e jornalista. Atualmente mestrando na UFVJM/MG. Mantenedor do Blogger “O Paulistano”, autor de “É duro ser Cabra na Etiópia”, 2013 (contos editados pela Atriz Maitê Proença, Editora Agir); “A voz de Tina” 2015 (peça teatral, Editora Clube de Autores); “Sereia presa na caixa d’água” 2017 (romance, Editora Madrepérola).

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