terça-feira, 5 de setembro de 2017




Por Manoel Herzog


Se eu tivesse capacidade pra crítica arriscava uma teoria literária: vivemos, nos anos dourados dos governos socialistas, um momento de expansão, autoestima nacional elevada, produção de bens de consumo e consumo destes bens por quem nunca antes etc. Hoje, na profunda depressão que o país vive, a decadência típica de uma sociedade que metaboliza as conquistas recentes dissolvidas no suco gástrico da desilusão, a volta ao jugo imperialista, a derrota, a desmoralização enquanto nação. Tivesse a capacidade pra crítica eu dizia ser o momento mais que oportuno para o surgimento de uma escola literária, algo novo, pujante, capaz até de suplantar o ranço modernista que domina a cena desde cem anos. A mim esta competência não é dada, mas conheço quem a tenha. Foi conversando com estes iluminados que constatei, pode ser.

Vem-se notando na poesia contemporânea uma busca pelo resgate das formas clássicas, e isto se dá pra além dos círculos acadêmicos, no mais popular do populacho, nas rodas de partido alto, no rap, funk, hip-hop, repente, embolada, quadras e sonetos, tudo quanto o verso livre modernista vem sufocando desde um século. Some-se a este movimento natural o surgimento de um gênio que consagra esta linguagem num universo marginal, escatológico, indigesto, bizarro: Glauco Mattoso, herdeiro direto e Gregório redivivo. Entre tantos cultores das antiguidades greco-latinas, poetas como Emmanuel Santiago, Pedro Mohallen, Guilherme Gontijo, Wilton Bastos et caterva, encontrei com grata surpresa o volume de sonetos de Leonardo Antunes, intitulado João e Maria – Dúplice coroa de sonetos fúnebres (Editora Patuá).

O autor, no prólogo, explica as origens medievais da coroa de sonetos, composição de quatorze poemas encadeados em que um inicia no último verso do antecessor. As duas coroas da obra se dizem fúnebres porque tratam da morte de duas personagens arquetípicas: o trabalhador e a trabalhadora brasileiros. Assim, de poema que busca retratar em três por quatro o cotidiano nacional, alça à condição de obra de arte a situação deplorável do homem brasileiro, aqui compreendida no conceito de “homem” também a mulher, maior vítima de um golpe de Estado eminentemente machista. 

O primeiro conjunto de sonetos vai discorrer sobre a tragédia de João, um pacato operário, que levava uma vida medíocre, sem sobressaltos, do labor pra casa, em convívio familiar sadio. Belo dia se tranca no quarto, vindo da faina diária, e dá um tiro nos miolos.

A segunda coroa, trágica e funérea feito a primeira, narra a desventura de Maria, trabalhadora num açougue que furta pequenos cortes de carne com que sustenta a família, pois o salário lhe é insuficiente, e sofre abuso sexual do patrão.

De se notar que quando o autor constela no universo literário duas figuras arquetípicas, com tais nomes, João e Maria, está trazendo o homem e a mulher do povo, grandes vítimas do massacre desta da máquina de moer carne, deste açougue inóspito em que a América Latina tem se transformado sob a égide do neoliberalismo. Perdeu o protagonismo que vinha alcançando e só hoje fornece gado de corte pra engrenagem. E perdeu o norte por conta a corrupção dos que um dia lhe acenaram com a possibilidade do sonho. O João e Maria do livro são os mesmo Hänsel und Getrel da fábula dos Grimm, crianças órfãs perdidas na floresta negra. A mãe lhes morreu, e o pai casou com uma megera que o convence a abandonar a prole.

Some-se a todo este enredo subjacente o fato de que o livro engloba a qualidade literária de um estreante que, em versos precisos, metrificados e trabalhados com cuidado de ourives, mas sem a superficialidade parnasiana, imprime no leitor a curiosidade pelo que ainda pode vir da produção deste jovem professor da UFRGS.




C. Leonardo B. Antunes é poeta, tradutor e professor de Língua e Literatura Grega na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente se dedica a uma tradução ritmo-poética do Édipo Tirano, de Sófocles.



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