quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Por Alessandro Atanes, para o PortoGente

A reinauguração do Teatro Guarany no último 07 de dezembro é uma data que oferece a chance de uma pequena reflexão histórica.

Tudo começa com um artigo do escritor Flávio Viegas Amoreira, publicado recentemente no jornal A Tribuna e na Revista Pausa, em que faz um elogio público ao arquiteto, artista plástico e professor Paulo Von Poser, responsável pelo projeto e execução da pintura dos tetos da platéia e do foyer do teatro que abriu suas portas no mesmo 07 de dezembro, só que de há 126 anos atrás.

No texto de Flávio Amoreira (Paulo Von Poser, um mestre no Guarany) encontramos indícios para apresentar o papel dos trabalhadores da construção civil na edificação do Guarany e de outros prédios levantados na cidade nos anos seguintes. Ali, o escritor trata o arquiteto por “artesão da poesia em concretude” e “operário de estruturas visceralmente regulares” (usando expressão de Claude Lévi-Strauss). A frase chave da composição é a seguinte: “No Guarany, sem ser hiperbólico, suas noites [as de Paulo Von Poser] passadas sobre andaimes são dignas dum Michelangelo dos trópicos”.

Operário, artesão, andaime e, principalmente, a referência a Michelangelo remetem a um tempo em que não havia as distinções entre técnico, artesão e artista que mais tarde seriam definidas na modernidade. Reportagem assinada por Elcira Nuñez y Nuñez na mesma A Tribuna no próprio dia 07 revela traços do volume de trabalho pesado de Von Poser e sua equipe: os 14,55 metros por 9,20 metros de área do desenho no teto da platéia, os 27 galões da base acrílica, os quatro galões de cola neutra, as 170 latas de verniz e “muito crayon francês”.

Ao assinalar os papéis do projetista e dos pedreiros, o título da reportagem (Um trabalho de operários e artistas) traz implícito, assim como na imagem de Michelangelo, o tempo, ainda recente, em que ao invés de “operários e artistas” dizia-se “operários artistas”. Esse tempo é a década de 1910, quando os operários da construção civil formavam a categoria melhor organizada e com os melhores ganhos da cidade (a ascensão dos estivadores como grupo líder do movimento sindical só se daria na década de 1930). Quem mostra isso é o historiador Fernando Teixeira da Silva em Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras:

"Eram operários qualificados que se consideravam 'artistas', termo adotado na época pelos próprios pedreiros, canteiros, pintores, frentistas, estucadores, marmoristas, ladrilheiros, carpinteiros e outros.
(...)
O ofício do pedreiro ocupava uma posição estratégica, exigindo do profissional a leitura das indicações dos desenhos traçados para as construções e a perícia no manejo de esquadros, prumos, níveis e outras ferramentas manuais que, em inúmeros casos, lhes pertencia. Em seguida, encontrava-se em situação de centralidade o ofício de carpinteiro que, além do domínio do conhecimento de desenho, detinha noções de geometria e cálculo matemático.
(...)
Os pintores, por sua vez, não deixavam de ser operários qualificados, pois a arte das composições, mistura e tonalidades das tintas podia ser exercida até mesmo de modo secreto a fim de preservar seus segredos profissionais; além disso, podiam desenvolver habilidades estéticas utilizadas na decoração e em jogos visuais.
(...)
Muitos desses 'artistas' valorizavam, assim, os estudos de desenho geométrico, conhecimentos de modelagem e escultura, fundando em seus sindicatos e na Federação Operária Local diversos cursos. O orgulho em torno da qualificação profissional estava estampado na bandeira da União de Artes, Ofícios e Anexos (UAOA), em 1919: 'toda vermelha com as iniciais pretas, levando ao centro um esquadro e um compasso como símbolos das Artes e Ofícios'."

O historiador conta ainda na primeira parte do livro o momento de inflexão da força dos trabalhadores do setor a partir de 1914, com a carestia provocada pela eclosão da I Guerra Mundial e, logo em seguida, com os avanços técnicos que permitiram às empresas construtoras impor o pré-fabricado ao artesanal, a exemplo do que fez a Companhia Construtora de Santos de Roberto Simonsen, e, já no final da década, em 1918, com a prefeitura instituindo um novo Código de Posturas em que tira responsabilidade (e poder) dos mestres de obras em favor de arquitetos e, principalmente, engenheiros, profissão sobre a qual se depositava o impulso de construção da Nação.

A labuta de Von Poser, que chegou a dormir no teatro, ainda que em um momento bem diferente, aponta para o resgate da cultura material dos que põem a mão na massa. Não esqueçamos de quem foram os braços que levantaram o Guarany, o Coliseu, a Bolsa do Café, a Frontaria Azulejada...

Referências
Flávio Viegas Amoreira. Paulo Von Poser, um mestre no Guarany. Revista Pausa: 03/12/2008

Elcira Nuñez y Nuñez. Um trabalho de operários e artistas. Galeria. Santos: A Tribuna, 07/12/2008.

Fernando Teixeira da Silva. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas: Unicamp, 2003.

1 comentários:

  1. Rara euforia poder dialogar com a visão do Flávio sobre o trabalho do Paulo Von Poser...Certa noite de domingo tive a oportunidade de encontrá-lo em um evento indígena e fiquei encantada com seu cuidado com traços e pessoas!

    Abraços e parabéns!

    Sol

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