Ângela Castelo Branco
1.
A dobradiça da porta contém a possibilidade de morrer de luz. No mergulho não há espaço. É como olhar para trás e encontrar uma parede e, num gesto desesperado, dar um passo adiante e encontrar ela mesma.
Fica-se parado, completamente susceptível e ao mesmo tempo fortalecido. Lado a lado com a parede fica-se mais dentro de si. A saída é deixar a oura vida entrar.
2.
Não me olhes com os olhos de ontem. Não será possível nenhuma ponte entre nós. Olhe-me hoje, façamos um vocabulário do sol claro na janela, da noite que passamos solitários e que sustenta esta vontade no olhar.
3.
Um salto por vez. Nunca o fatal.
Vivo para o preparo de uma refeição que nunca será comungada. A eucaristia final é terrível, não pode ser praticada.
4.
Festejar seus mortos: tarefa que só os vivos podem fazer. Morte e vida, nada mais que revoluções internas.
5.
Acordei pensando em um poema que irá se estender até o final dos meus dias.
6.
Aquele pôr-do-sol na janela. Nada em mim é mais bonito.
7.
Pois somente quando o amor te olha
sabemos o quão pesados fomos
8.
Lembra-te da tua casa
e da roupa pequena que vestias
guardando um chamado tão preciso
e verás que tudo combina com o amor
as mentiras de natal
as folhas do aluguel
e os esconderijos no congelador
9.
- e revirava nas manhãs
sua fome de lobos noturnos-
10.
levantou a cabeça.
naquela casa, só um se movia
olhos nos olhos arrancados sobre a mesa.
11.
saíra do quarto ainda ofegante:
desfiara gritos e acusações
ajeitou seu vestido de flores
esticou as meias até o joelho,
arrumou a devoção entre os dedos
sentou-se na sala
e disse:
-eu, a filha da escolhida-
12.
serei aquele instante antes do banho,
dito em todas as línguas,
expandindo por todos os quartos
a moeda que nunca será gasta
a maldição mais delicada:
- o encalço.
Apresentação por Flávio Viegas Amoreira
“Crescer nos torna menores
E uma flor a mais é o suficiente”
Do livro Orações, de Ângela Castelo Branco.
Indizível ventura é reencontrar uma poeta que surge como um clarão numa tarde de tempestade: Ângela Castelo Branco é da ordem da naturaleza incomum das coisas: mesmo extraíndo o humus poético lavrando em terra acre ou apartir da pedra cinzelada moldando-a com sua pena doce e forte ela poeta: alinhavando a palavra pedra em toda sua bruteza. Sua construção é epigramática emergindo como poema-ilha dum vulcânico magma que expõe com precisão sem arestas toda densidade rompida da erupção do abissal infinito em seu profundo: versos contidos como represas metafísicas ou semiológicas já antevendo a profundez oceânica de sua ruptura.
Lembro Goethe: "enquanto o trabalho do espírito do mundo é conservar mistérios antes da ação, ou mesmo depois dela, o sentido do poeta é o de ir revelando o mistério...". Seus livros tem me acompanhado nos últimos meses como breviários do sagrado: quando falo em tê-la reencontrado: faço corrigindo Vinicius: Amizade entre literatos é arte do “reencontro”. Ângela além da poeta, é literata no sentido de ter relação quase de fisicalidade com os signos carregados de significado elaborados na intersecção de Emily Dickinson e Mário Faustino: a prosódia de seus poemas-aforismos me tocam tanto quanto minha fixação em Holderlin: à essa poeta, escritora de cabeceira da Novíssima Geração que dedico uma tradução desse mesmo Holderlin:
"Meu Dia outrora principiava alegre;
No entanto à noite eu chorava. Hoje, mais maduro:
nascem-me em dúvida os dias, mas findam sagrada,
serenamente."
Quando Cecília Meireles descobriu poemas de Hilda Hilst, disse-lhe: "Quem nos deu esses textos, nos deve mais e mais do mesmo que tanto nos encanta". Quando leio Ângela, vejo quanto se justifica o título do seu blog que visito diariamente: O SAGRADO: é daí que espreito sua sutileza. Com cuidado de escanfadro vou sondando esse novo enigma...
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