sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Ângela Castelo Branco

1.

A dobradiça da porta contém a possibilidade de morrer de luz. No mergulho não há espaço. É como olhar para trás e encontrar uma parede e, num gesto desesperado, dar um passo adiante e encontrar ela mesma.

Fica-se parado, completamente susceptível e ao mesmo tempo fortalecido. Lado a lado com a parede fica-se mais dentro de si. A saída é deixar a oura vida entrar.

2.

Não me olhes com os olhos de ontem. Não será possível nenhuma ponte entre nós. Olhe-me hoje, façamos um vocabulário do sol claro na janela, da noite que passamos solitários e que sustenta esta vontade no olhar.

3.

Um salto por vez. Nunca o fatal.

Vivo para o preparo de uma refeição que nunca será comungada. A eucaristia final é terrível, não pode ser praticada.

4.

Festejar seus mortos: tarefa que só os vivos podem fazer. Morte e vida, nada mais que revoluções internas.

5.

Acordei pensando em um poema que irá se estender até o final dos meus dias.

6.

Aquele pôr-do-sol na janela. Nada em mim é mais bonito.

7.

Pois somente quando o amor te olha

sabemos o quão pesados fomos

8.

Lembra-te da tua casa

e da roupa pequena que vestias

guardando um chamado tão preciso

e verás que tudo combina com o amor

as mentiras de natal

as folhas do aluguel

e os esconderijos no congelador

9.

- e revirava nas manhãs

sua fome de lobos noturnos-

10.

levantou a cabeça.

naquela casa, só um se movia

olhos nos olhos arrancados sobre a mesa.

11.

saíra do quarto ainda ofegante:
desfiara gritos e acusações
ajeitou seu vestido de flores
esticou as meias até o joelho,
arrumou a devoção entre os dedos
sentou-se na sala
e disse:
-eu, a filha da escolhida-

12.

serei aquele instante antes do banho,
dito em todas as línguas,
expandindo por todos os quartos
a moeda que nunca será gasta
a maldição mais delicada:
- o encalço.

Ângela Castelo Branco mora em São Paulo, é escritora e membro do Atelier do Centro-SP (espaço interdisciplinar de formação em arte), atua na formação de educadores e artistas. Possui um livro de poesias publicado pela editora Laser Print: Orações (2008), e dois livros independentes: Oferenda (2008) e O que digo, O que me diz (2009). Mantém o blog O Sagrado.

Apresentação por Flávio Viegas Amoreira

“Crescer nos torna menores
E uma flor a mais é o suficiente”
Do livro Orações, de Ângela Castelo Branco.

Indizível ventura é reencontrar uma poeta que surge como um clarão numa tarde de tempestade: Ângela Castelo Branco é da ordem da naturaleza incomum das coisas: mesmo extraíndo o humus poético lavrando em terra acre ou apartir da pedra cinzelada moldando-a com sua pena doce e forte ela poeta: alinhavando a palavra pedra em toda sua bruteza. Sua construção é epigramática emergindo como poema-ilha dum vulcânico magma que expõe com precisão sem arestas toda densidade rompida da erupção do abissal infinito em seu profundo: versos contidos como represas metafísicas ou semiológicas já antevendo a profundez oceânica de sua ruptura.

Lembro Goethe: "enquanto o trabalho do espírito do mundo é conservar mistérios antes da ação, ou mesmo depois dela, o sentido do poeta é o de ir revelando o mistério...". Seus livros tem me acompanhado nos últimos meses como breviários do sagrado: quando falo em tê-la reencontrado: faço corrigindo Vinicius: Amizade entre literatos é arte do “reencontro”. Ângela além da poeta, é literata no sentido de ter relação quase de fisicalidade com os signos carregados de significado elaborados na intersecção de Emily Dickinson e Mário Faustino: a prosódia de seus poemas-aforismos me tocam tanto quanto minha fixação em Holderlin: à essa poeta, escritora de cabeceira da Novíssima Geração que dedico uma tradução desse mesmo Holderlin:

"Meu Dia outrora principiava alegre;
No entanto à noite eu chorava. Hoje, mais maduro:
nascem-me em dúvida os dias, mas findam sagrada,
serenamente."


Quando Cecília Meireles descobriu poemas de Hilda Hilst, disse-lhe: "Quem nos deu esses textos, nos deve mais e mais do mesmo que tanto nos encanta". Quando leio Ângela, vejo quanto se justifica o título do seu blog que visito diariamente: O SAGRADO: é daí que espreito sua sutileza. Com cuidado de escanfadro vou sondando esse novo enigma...

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