terça-feira, 13 de outubro de 2009

Alessandro Atanes

O artigo começa hoje com citações de dois autores. Não é uma questão de adivinhação, mas revelarei o nome de cada um apenas nos comentários após as descrições, pois o que vale é, além dos nomes, notar os procedimentos tão próximos entre si que adotaram e que servem de guia para mais um artigo que busca relacionar Literatura e História. Vamos lá:

Autor 1:

1. Sonhei que Georges Perec tinha três anos e visitava minha casa. Eu o abraçava, beijava, lhe dizia que era um menino lindo.

(...)

8. Sonhei que ia caminhando pelo Passeio Marítimo de Nova York e via à distância a figura de Manuel Puig. Vestia uma camisa celeste e uma calça de tecido leve, azul clara ou azul escura, depende.

9. Sonhei que Macedônio Fernandez aparecia no céu de Nova York em forma de nuvem: uma nuvem sem nariz nem orelhas, mas com olho e boca.

(...)

13. Sonhei que lia Stendhal na Estação Nuclear de Civitavecchia: uma sombra deslizava pela cerâmica dos reatores. É o fantasma de Stendhal dizia um jovem com botas e nu da cintura para cima. E tu, quem és?, lhe perguntei. Sou o junkie da cerâmica, o hussardo da cerâmica e da merda, disse.

(...)

31. Sonhei que a terra acabava. E que o único ser humano que contemplava o final era Franz Kafka. No céu os Titãs lutavam até a morte. De um banco de ferro forjado do parque de Nova York, Kafka via arder o mundo.

Autor 2:

2. A INVISIBILIDADE (Morte dentro dos nomes)

“Sobre o crânio da raça humana o amor faz seu ninho”, Charles Baudelaire

A Avenida é uma chuva horizontal de crânios embrulhados em violentas pétalas de carne cada embrulho é um segredo com florestas esquecidas transitando como poeira entre um e outro pensamento (Sussurrava Fernando Pessoa na Praça olhando para as filas aleatórias que atravessavam a rua).

Um crânio armazenando o tempo para uso exclusivo do tempo... O que não significa nada. Ele gritava para os carros: Ó infernais explosões de carnes mortas embrulhadas em perguntas. Pessoa era só mais um que gritava nas esquinas, a alguns metros dele gritavam também Ésquilo, Blake e Murilo Mendes e do outro lado da rua um cansado Edgar Alan Poe quase sem voz dividia um maço de cigarros Sucesso com Luís de Camões. Era quase impossível reconhecê-los e com certeza até o fim dos tempos estariam todos novamente mortos.

Pausa para uma pergunta:

(...)

O nome do jogo, é sonhar

Pode ser uma bela inversão da lógica da morte,

ao tentar não-pensar penso, logo, sonho.

Sonho com Chet Baker fumando um cigarro

na sacada do hotel, antes de cair,

com minha mãe morta me acordando,

sonho que não existo,

sonho com Baudelaire e dizendo que:

A vida humana vale menos do que uma fábula de Akutagawa.

Sonho que Bogart e Camus são a mesma pessoa,

sonho que Miles e Coltrane estão tocando com os Beatles,

sonho que Jorge de Lima está lendo A invenção de Orfeu

para Brian Wilson,

(...)

Nos trechos selecionados, tanto o Autor 1 quanto o Autor 2, ambos contemporâneos, tomam a lógica dos sonhos para compor cenários em que outros autores interagem, criando aproximações inusitadas entre artistas, Kafka e Puig em Nova York, jazzistas e os Beatles em uma jam session, Jorge de Lima lendo para um roqueiro dos anos sessenta.

Essas referências podem ser tomadas por declarações ficcionais de influências ou gostos dos autores 1 e 2, mas também são um indício de como a literatura se tornou ela mesma um tema literário. E aí cabe uma questão que afeta diretamente o leitor comum: vale a pena ler autores que remetem a outros autores que talvez não conheçamos? E além disso: teremos que conhecer os autores citados para entendermos a narrativa daqueles que os citam?

Para mim, as respostas são claras: sim e não. Sim, as referências não atrapalham a narrativa: podemos nunca ter ouvido John Coltrane, mas inferimos que é um músico pela própria narrativa, Stendhal e Kafka, por mais que alguém ainda não tenha lido, são nomes que estão no ar que acabam reconhecidos pelos leitores do autor 1. E não, porque, por mais que haja referências, cada texto define seus próprios limites, isto é, é um universo literário completo.

E aí nos deparamos com o que Umberto Eco chama de níveis de leitura. Alguém que já conheça o autor citado terá condições de criar novas e intermináveis conexões (isso já é caso para a biblioteca infinita de Jorge Luis Borges). Mas o mais legal de tudo isso, ainda conforme o autor de O Nome da Rosa, é que para subir de um nível ao outro não é necessária qualquer regra, apenas acumular leituras, quanto mais prazerosas e compromissadas melhor (sim, os dois termos podem caminhar juntos).

Epílogo

O autor 1 é Roberto Bolaño (1953-2003), chileno que tenho lido muito nos últimos tempos. É considerado por muitos um dos maiores prosadores da língua espanhola de seu tempo. Para mim, cujos livros conheci após sua morte, já é um clássico. É autor de Os detetives selvagens, Amuleto, Noturno do Chile, Pista de Gelo e Putas Assassinas (títulos traduzidos no Brasil).

Os trechos acima são de Un paseo por la literatura, parte final da seleção de textos reunida em Tres, livro publicado em Barcelona em 2000, ainda não publicado por aqui.

O autor 2 é Marcelo Ariel, contemporâneo, amigo, morador de Cubatão e ainda em início de trajetória literária. Publica em revistas na internet, no seu blog Teatrofantasma e é autor de Me enterrem com a minha AR-15 (Dulcinéia Catadora, 2007). O poema Pausa para uma pergunta: pode ser lido na íntegra no site Cronópios. A invisibilidade faz parte de Tratado dos anjos afogados (LetraSelvagem, 2008), segundo livro do autor, e pode ser lido no Portal Literal. Pela Dulcinéia voltou a publicar, agora em 2009, seu terceiro volume: O céu no fundo do mar.

Esta não é a primeira vez que comparo Ariel com um autor reconhecidamente clássico. em um artigo sobre o Tratado escrevi que Ariel aproveita, como fazia o escritor argentino no final da vida, de conversas e entrevistas e situações cotidianas para criar comentários de estilo literário, como se a vida fosse só uma desculpa para a ficção. Desta vez é o procedimento literário da lógica onírica, digamos assim, que o coloca lado a lado a Bolaño que, mesmo morto, é um estrela em ascensão no mundo literário internacional.

Não é questão de afirmar que Ariel é tão bom quanto o chileno, porque este não é uma crítica de apreciação estética, mas sim de perceber, como um historiador da literatura, que Ariel tem sensibilidade para usar as mesmas ferramentas literárias que os grandes usam, e isso, com certeza, não é pouco, não.

Sobre a função do sonho na criação artística e na formação do pensamento, leiam Do sonho da História à História do Sonho, resenha de Aléxia Bretas.

Referências:

Roberto Bolaño. Tres. Barcelona, Espanha: Acantilado, 2000.

Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

1 comentários:

  1. Além de cultural, informativo e interessante - o conceito desse blog cativa! Gostei do que vi e li!

    já sou novo seguidor e vamos manter contato!
    viva a literatura e cultura!

    abs

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