quinta-feira, 19 de novembro de 2009


Flávio Viegas Amoreira, publicado originalmente em Cronópios

“Existindo já era a forma de ser aquilo que queria,
não esforçando a feitura de um outro mais bem
acabado, sabia que mesmo sem se mover já
estava sendo.”


Esse primeiro poema de Orações foi “overture” para um universo que vem me fascinando pela hermenêutica experimentada quando do percurso empreendido em suas sendas: a obra poética de Ângela Castelo Branco, em livros e em blog. Quando caíram-me as mãos (pois assim foi desavisado que encetei a marchar nessa atmosfera lírico-ontológica), seus textos poéticos em estrofes contidas e epigramáticas provocaram um digressão a autores que vivenciaram a mesma “exacerbação dos sentidos” que posso enfeixar no título que a poeta dá ao seu site: a liturgia artística do “Sagrado”. Logo recorri ao filólogo e crítico vienense Leo Spitzer citando o poeta americano Karl Shapiro em digressão ao seu estudo sobre John Donne e San Juan de la Cruz, ancestrais literários de minha mirada sobre a Ângela: “... contesto o princípio subjacente à ‘explication de texte’. Um poema não deveria servir como tema de estudos lingüísticos, semânticos ou psicológicos. Poesia não é linguagem, mas uma linguagem ‘sui generis’, que só pode ser entendida, parafraseada ou traduzida como poesia. Uma mesma palavra que figure em um trecho de prosa ou em um verso transforma-se em duas palavras diferentes, nem mesmo semelhantes, exceto em aparência. Eu preferia designar a palavra da poesia como ‘não-palavra’... um poema é uma construção de ‘não-palavras’ que, tomando distância do sentido, alcançam por meio da prosódia um sentido-além-do-sentido. Não se sabe qual é o fim de um poema”.


“No mergulho não há para onde
Acordei pensando em um poema que irá
se estender até o final dos meus dias”


Com Spitzer, pondero que o conceito de “não-palavras” reduz muito o arco de possibilidades da Poética: o ritmo e as associações não permitem essa redução apenas ao encadeamento de ‘significantes’. Diz o mestre austríaco com o que concordo: “Em vez de dizer que a poesia consiste em ‘não-palavras’ que, tomando distância do sentido, alcançam por meio da prosódia um ‘sentido-além-do-sentido’, eu sugeriria que ela consiste em ‘palavras’, cujo sentido é preservado e que, pela magia do labor prosódico do poeta, alcançam um ‘sentido-além-do-sentido’”. Pela maturação, por aquilo que Francis Ponge chamava “saturação da literatura”, procurando uma resposta ao “mutismo dos objetos”, diria que Ângela deixa exposta a tessitura e os “andaimes” à vista mesmo elaborando virtuosisticamente poderosas metáforas e jogos de linguagem: os paradoxos, os “oxímoros” não perdem sua grandeza conteudal pela evocação continuada e a quase “prosificação” com melopéia intrínseca: é poeta do entrecho com escoras fincadas numa melodia muito profunda: reflete pela sensação jamais irredutível ao texto: é “assíndeto”, não reproduz mimeticamente uma dialética previsível. Insisto: um poética que não se fecha.... Muito presente é o elemento “confessional”, mas com viés catártico sutilíssimo: “kathársis” = purgação das emoções no espectador devida à sua identificação com o objeto da representação. Através das circunstâncias e elementos dados pelo mundo em sua radical imanência, a poeta dispõem todo questionamento ascendente nos propondo “êxtasiamento” sem perda do reflexivo calculado em seu desdobramento.


"Pois somente quando o amor te olha


Sabemos o quão pesados fomos"



"Não basta aceitar


É preciso acontecer


o sim"


Dum estoicismo fragmentado, quando releio esses aforismos que vão muito além de se encerrarem no utilitário epicurista de aforismos, remeto à Emily Dickinson a partir de seus poemas paradigmáticos da concisão supra-eloquente e René Char, na clarificação heideggeriana do que Hilda Hilst gostava de chamar “fenomenologia poética”. “A fenomenologia é, então, uma ‘psiconosía’ ou exame das ‘idéias’ tal como de fato surgem e desaparecem no decorrer dos processos mentais” – como define Ferrater Mora. Em seus poemas carregados de intuição “logopaica”, ela contextualiza a presentificação e retém do Devir pulsante o sumo da duração: desde o “phatos” amoroso ao “revelatório” que a palavra precisa alinhava dum mar de memória:


“Não me olhes com os olhos de ontem. Não será possível nenhuma ponte entre nós. Olhe-me hoje, façamos um vocabulário do sol claro na janela...”


Seu ofício na escritura militante, cotidiana, é uma forma de sagrar sem ortodoxias o que se “fossilizaria” pela conceituação “divinatória” do que seja “Sagrado”. Ela nos revela o sagrado na “eminência da imanência mesma...”. Sua poética não busca deliberadamente a originalidade estilística: instaura o humano com toda seiva ainda germinada de ancestralidade e saber arcano revisitado com olhos de permanência e atemporalidade necessárias para uma intencionalidade da resistência. Aqui nesse Cronópios e em revistas virtuais importantes, Ângela representa um “cânone” renovado pela insistência no conteúdo cultivado, no questionamento mesmo do próprio êxtase poético e da metalinguagem exposta para argüir a persistência e validade da Literatura em tempos de barbárie e niilismo não-propositivo: pedagogia incisivamente inscrita no Verbo. Volto a René Char para distinguir essa poeta pela intersecção tão bem medida entre pensamento e melodia:



“A poesia é este fruto, maduro, que apertamos na mão com alegria, no mesmo instante em que ela surge com o futuro incerto, dentro do cálice , na haste gelada da flor”.


É toda Arte que seus textos tangenciam e impregnam numa intertextualidade digna de Schelegel: “Naquilo que chamamos de filosofia de Arte costuma faltar um dos dois: a filosofia ou a arte”. Sua obra em construção incessante traduz essa “filosofia da arte” que só a Alta Literatura, em especial a Poesia, pode fazer convergir num cadinho mais-que-perfeito pela palavra justa: os teóricos de arte em seus "castelinhos teleológicos" perdem de longe nas definições para os poetas dessa estirpe , enfatizo: logopaica segundo Pound.



Ainda segundo Schlegel: “Em todo poema é preciso que tudo seja intenção e tudo instinto. Por isso ele se torna ideal”. Um poema recente da poeta revela a literata, aquela que “quando sente, pensa”.


"é a manhã que me sopra


e preenche a fala dos homens


que crêem nas páginas em branco


reza por quem quiseres


e aceita que a folha


vai com o vento,


que arde no foto


e que descansa na estante,


só amanhece no rosto que move a escrita"


Quero nesse “ensaio crítico” revelar pontos altos da obra em franco processo de Ângela, e para isso vou até um dos meus avatares: Auden. Em sua obra-prima de teoria literária livre das amarras acadêmicas: “A mão do artista”, ele nos traz alguns “toques” que servem com maestria para “procurar entender sentido” essa poeta paulistana e seus contemporâneos aqui brilhando nesse Cronópios, portal da Novíssima Literatura Brasileira.


"Alguns escritores confundem autenticidade, que deve ser constantemente perseguida, com originalidade, que jamais deveria preocupá-los".


Aqui exponho a despreocupação grandiosa, “desencanada” de Ângela Castelo Branco com “arroubos vanguardosos e sectarismos conceituais”: ela compõe pelo mesmo "sensacionismo" de Pessoa , agora com um trato urbaníssimo, "cosmopolitano" como Sampa pede e universaliza. Sigamos mestre Auden para atinar com propriedade de quem admira por sentir sinestesicamente essa poética da sacralidade advinda do fulcro, do âmago:



“Cada obra de um escritor é um primeiro passo, mas terá sido um passo em falso a menos que seja, ao mesmo tempo, um passo a frente (mesmo que o escritor não se dê conta disso na ocasião). Um indício de que jovem poeta tem algum talento verdadeiro é o interesse maior em brincar com as palavras do que em dizer coisas originais. Poesia não é magia. A poesia, como qualquer outra arte, possui um propósito oculto, não-expresso, ou seja, busca desencantar e desintoxicar”. Aí é de novo o “desvelamento heideggeriano” notável em René Char e Ângela Castelo Branco, a beatitude da atmosfera, o “sustenido” duma harmonia das esferas, um “adaggio” que se infinitiza com perícia da observadora do momento que escorre: apreendendo o fluxo liberto, ainda liberado no casulo do poema “perfazendo-se” no “espelhamento” do interpretante.



“fim de tarde nos meus olhos


as cavalarias e os homens de fé


passam por aqui


- espada em riste


bandeiras eloqüentes


o menino santo olha a cena


salta do parapeito


e me devolve a lucidez


é hora de aceitar o grande desígnio


folhear o livro com as mãos ungidas


do fresco aroma


da pele que sustenta o mar em revolta.”


Algo que me toca profundamente em sua obra é revelador dum bom sintoma das novíssimas gerações de escritores: o interesse pela tradição sem abdicar da renovação de formas e novas abordagens literárias. Leitora de Emily Dickinson, Mário Faustino, Anna Akmáthova, Virginia Woolf, apreciadora do cinema de Arte e profunda conhecedora de artes plásticas, Ângela me provoca resgate desse Auden para mim tão precioso: “Um jovem ou uma jovem que visa à erudição também tem razões para estudar porque tem uma noção razoável daquilo que deseja saber. Mas não há nada que um futuro poeta tenha certeza de que precisa saber”. Mesmo na “convicção cética ou líquida” da bagagem necessária para alavancar a intuição, a sensorialidade, a percepção aguda para um poeta, – o bardo não pode contar com instrumentos precisos que o habilitem: impossível a transmissão de talento: “desespero não se ensina”: o que nos move na criação de sua urgência em nossa existência, é a essencialidade compartilhada: a importância da interlocução, a generosidade “acumpliciada” de delírio sóbrio de luz que nós escritores partilhamos.


Gosto da frase certeira de Robert Graves: “Os poetas nascem, não são feitos”. Ao re-visitar com olhos de exegeta esses poemas de Ângela, vejo que essa é a interpretação de sua boa “condenação”, o bom fado de ser visceralmente poeta, fundamentalmente escritora. Ao mais amadurecente escritor, é o que reluz horizonte denominado porvir. Vendo a jovem com seu lirismo denso, observo quanto tenho que ler ainda dela própria que virá: tenho nostalgias de futuro e ansiedades pelo arcano: ler Ângela, Sóror Juana Inês de la Cruz , Santa Teresa D´Avila e nosso farol mais próximo que ainda retine: Hilda Hilst. Num inverno de 1995, enquanto fazia Hilda rememorar sua infância em minha terra mítica: Santos, guardei uma pérola desse Oceano que nos protege real ou turbilhonando no sangue: “Literatura, Flávio, é como aquela prova de bastão em revezamento: somos guardiões de uma chama que não se apaga: é intuição dum mesmo fulgor que muda de mãos, mas segue a disposição: você recebe a poesia e segue. Recebe quando pensa que ela te toma”. Assim sigo crendo no silêncio que irrompe fazendo-se corpo pela palavra que esboça um discernimento plausível do Absurdo... Não penso essa poesia, ela me foi “sentida” e por esse toque acabei por compreender sua narrativa atávica e perene. Poesia contando-se: garrafas atiradas a um insulado que vislumbra ser um ex-náufrago. O caminho de dentro é o poema móvel: teus poemas, Ângela : “tem a moldura que a literatura deseja vestir”.

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