quinta-feira, 19 de maio de 2011

Alessandro Atanes

 

Recebi na semana passada do poeta Ademir Demarchi o número 1 da revista Babel Poética, editada por ele com projeto gráfico e edição gráfica de Amir Brito Cadôr. A publicação sai pelo Programa Cultura e Pensamento, do Ministério da Cultura, que premiou ainda outros três projetos de revistas culturais além da Babel Poética, 10 mil exemplares de cada uma (mais de 170 disputavam o edital promovido pela Associação dos Amigos da Casa Rui Barbosa; o prêmio dá direito ainda à publicação de mais 3 números de cada selecionado).

As pilhas de contêineres da capa da primeira edição – de Demarchi, Cadôr, e Paulo de Toledo – remetem à cidade portuária onde a revista foi editada (Santos, nº 1, nov./dez. 2010). Na contracapa, informações da publicação (conselho editorial, crédito ou títulos das imagens). A página 1 traz as mensagens do patrocinador (Petrobras) e do Programa Cultura e Pensamento.

A página 2 antecede o conteúdo com um poema visual de Paulo Bruscky e, na página 3, o título da edição: BABEL POÉTICA POESIA NA ERA LULA. No editorial, Demarchi explica a escolha “Era Lula” por selecionar autores contemporâneos com poemas escritos desde 2000, a quem o editor pergunta:

Como lidam com o nacional, o regional e o local? Como lidam com as fronteiras geográficas, culturais, linguísticas, simbólicas? Como o país e sua cultura se mostram em seu trabalho? Em meio ao inevitável fluxo globalizante que tende à pasteurização uniformizadora de culturas e identidades, como se constituem locais de afirmação e diálogo e como o local se mostra e repercute na poesia?

Ainda assim, espíritos de porco da disputa tucano-petista poderiam, depende da perspectiva, chamar a revista de “puxa-saco com dinheiro do ministério” ou lembrar “que nunca antes na história deste país um programa publicou quatro revistas culturais”. Para quem vê as questões nacionais por meio das lentes desta disputa, o editorial pode não parecer suficiente.

Mas aí viramos a página e lemos a poesia de Marcelo Ariel. Em imagens oníricas e violentas, Ariel desmonta, tijolo a tijolo, a estrutura da nação, não importa sob qual governo.

Me enterrem com a minha AR 15

A rajada volta a soar
como a onda da vida
Fica frio... É só mais um número-fantasma na área...
O urubu no esqueleto do leão
escapando da arena...
Quem atira é o pseudo-morto, meu irmão...
Maluco... Acabou a munição... Foda-se, continuo atirando...
Para cima... Beleza... é só isso... a fumaça
que sai do cano e sobe até as nuvens...
Laser no meu peito... Tá ligado... na sequência... O coração... explode...
e estou livre da boca
que se abre pro mar...
Quer saber... Morrer não dói...
primeiro o tempo fica bem devagar... Tipo sonhando...
Aí vem um clarão... Você vê o Morro por todos os lados...
E então...

No poema em prosa, Beckett-celular, a coisa se torna ainda mais visceral, como uma ficção científica pré-moderna ambientada em uma cidade industrial do terceiro mundo na qual um recém-nascido é atirado do quarto andar e explode ao bater no chão e dele saem telefones celulares com MP3 e câmeras digitais que, por sua vez, transformam-se em mendigos do futuro com diplomas de grandes universidades “visíveis por 30 segundos por causa das 9.000 câmeras da Avenida Geral (Ex-Avenida Paulista)”.

Em seguida, acompanhamos uma jovem de 17 anos que visita o interno Funk-Show no presídio-escola para transar sem camisinha após terem se conhecido no “msn-3.000 do Google-zone”.  Fiquemos com o trecho final:

Ela vai ficar grávida... Ele vai desligar o celular... O ex-presidente vai mandar desligar os aparelhos... O presidente vai aparecer na tv digital de 11 milhões de canais... O mendigo que estava lendo Voltaire vai encontrar outro recém-nascido no lixo... O ex-mendigo agora pseudo-terrorista simbólico vai escrever no muro do presídio-escola:

‘Não no Brasil... O não no Brasil... O não nunca no Brasil... Sem o nunca...

Sim jamais no Brasil...

Nunca no sim... O Brasil no nunca... sempre para o nunca... Amém!’

E aqui onde estamos ‘GANHEI’ foi o que ele disse para o ministro antes de cair... antes de cair na poltrona... do corpo do presidente saíram vários celulares e todos vibraram enquanto ele dormia

num deles... o fantasma do ex-presidente tentava em vão falar com o presidente-fantasma... O ex-mendigo do meio do poema segurando o recém-nascido tirado do lixo disse como se rezasse:

- Seja bem vindo GODOT!

Os dois textos de Marcelo Ariel são de Me enterrem com minha AR 15, seu livro de estreia, que registrei na coluna Dois autores lêem o presente, publicado pelo selo editorial artesanal Dulcinéia Catadora.

E aí está outro acerto da Babel Poética. Toda a série que forma a parte que dá título à edição é constituída por autores publicados pelo Dulcinéia Catadora, uma afirmação de que parte da poesia publicada no Brasil nos últimos anos chegou as mãos dos leitores por meio deste projeto que publica livros de papel reciclado com capas de papelão comprado de catadores e pintadas uma a uma por crianças e jovens (geralmente filhos desses catadores), transformando cada exemplar em um objeto único.

O próprio Demarchi lançou um selo catador aqui na Baixada Santista, com cinco títulos já publicados desde novembro do ano passado, inclusive A morte de Herberto Helder e outros poemas, também de Ariel (ver Os livros artesanais da Sereia Ca(n)tadora).

Pós Escrito
A Babel Poética será lançada na próxima sexta-feira (27/05) no Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e à Adolescência, ponto de cultura gestor da revista cultural, na Rua Caminho dos Barreiros, 491, Beira Mar, em São Vicente.

 

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