quinta-feira, 26 de maio de 2011

Alessandro Atanes

José Luiz Tahan, proprietário da livraria Realejo e da Realejo Edições, tem uma folha corrida de serviços prestados à cena cultural santista. Há anos traz escritores para Santos e prepara a terceira edição da Tarrafa Literária, como anunciou em entrevista ao jornal A Tribuna publicada no domingo (22/05), comemorando os 10 anos da loja.

Apesar de toda a festa que a Realejo merece, o objetivo deste texto é problematizar a relação entre o evento literário e a literatura produzida por aqui. Além de meu papel de crítico, escrevo com a “autoridade” de cliente que tem em casa cerca de uma centena de livros comprados ali desde a primeira loja na Unisantos.

Parto de uma afirmação do próprio Tahan incluída no texto da repórter Patrícia Figueiredo: “É muito comum recebermos livros de pequenas editoras, que são avisadas pelos autores e nos abordam. Podemos ter, lado a lado, Keith Richards, Lobão, Ozzy Osbourne e Marcelo Ariel, poeta de Cubatão”.

Em uma das matérias da página, ao falar da Tarrafa 2011, ele diz o seguinte: “Demos ares cosmopolitas à Cidade. Adoramos receber autores santistas, mas não há cotas”. Aí a coisa pega. Sem contar que Santos já é cosmopolita há muito mais tempo que o das edições da Tarrafa, o problema não é trazer ou deixar de trazer santistas (Maria Valéria Rezende e José Roberto Torero participaram das edições anteriores), mas virar as costas para a literatura escrita atualmente na cidade. Não estou pedindo para dar a Marcelo Ariel o mesmo destaque que teria Keith Richards se viesse a Santos, mas não há motivos para deixar de falar de Marcelo Ariel na Tarrafa, já que é um dos poetas mais inventivos do Brasil, com cinco livros, já publicado em espanhol e alemão.

Por que não mesas paralelas aos convidados-estrelas para discutir nossa literatura de alta qualidade? Além de Ariel, temos uma série de autores que poderiam estar ali. Vou citar apenas mais um, Ademir Demarchi, poeta e editor da Revista Babel, primeiro colocado em um concurso nacional para publicação de revistas culturais promovido em 2010 pelo Ministério da Cultura entre mais de 170 projetos (ver aqui). Sem contar que antes havia recebido prêmio da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo (Proac) para publicar o livro Os mortos na sala de jantar, que o autor levou, veja só, para a Realejo publicar (o cara consegue ser premiado tanto por PT como por PSDB, mas não é o suficiente para ser convidado?).

Em novembro do ano passado, o poeta peruano Óscar Limache, tradutor de poesia brasileira, em visita à cidade, declarou (eu ouvi) que os livros de poetas que escrevem desde Santos estão em um nível que não costuma encontrar em outros centros brasileiros. Ele anunciou há alguns dias que já conseguiu editor para publicar Demarchi em espanhol e que está preparando uma coletânea com outros nomes que conheceu por aqui.

Mas não é só isso. Dá para pensar em um formato em que caibam formas diferentes de falar de livros e literatura. O Festival de Teatro Latino-Americano Mirada, realizado em Santos pelo Sesc, trouxe no ano passado dezenas de grupos do Brasil e da América Latina para a cidade, mas não deixou de colocar na programação um grupo teatral local, sem contar que promoveu debates com a participação de produtores, diretores, atores e intelectuais locais. O Festival Música Nova, ainda que no registro erudito experimental, reúne há décadas nomes estrangeiros com intérpretes e compositores nacionais e locais.

O Seminário Internacional de Jornalismo Cultural, que o mesmo Sesc realizou na semana passada em São Paulo, trouxe nomes como a intelectual-estrela Camile Paglia, o historiador do livro Roger Chartier, o cineasta Werner Herzog e os escritores Juan Pedro Gutierrez e Enrique Vila-Matas (convida o Vila-Matas para a Tarrafa, Zé), mas jornalistas, escritores, intelectuais e artistas brasileiros compuseram mesas que debateram uma grande gama de questões do tema.

Enfim, dá para unir venda de livros, nomes estelares, entretenimento, discussão intelectual e fomento e reflexão sobre a literatura daqui, sem cotas, mas com atenção. Estamos em tempos do “glocal”, local + global, onde tudo se encontra. A questão é querer, ainda mais em um evento realizado com recursos de renúncia fiscal.

Que a terceira Tarrafa possa ser jogada também em nossas férteis águas literárias.

Serviço
3ª edição da Tarrafa Literária – 24 a 28 de agosto – Teatro Guarany.
Convidados anunciados: Inês Pedrosa (Portugal), Ian Sansom (Irlanda), Mário Prata, Laerte, Fabrício Carpinejar, Adriana Carranca, Fernando Morais.
Show de abertura: Wandi Doratioto e Ouro Verde (viu como dá para mesclar local e nacional?).

6 comentários:

  1. A água da "Tarrafa Literária" não nos banha; ela não é suja, contudo fria e eu apenas um umbigo, ilhado, mas tentando comunicar através da água que nos banha. Ricardo Rutigliano Roque.

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  2. O Música Nova está correndo sério risco de deixar de existir, o que é um absurdo diante da importância deste evento.

    Cultura, no Brasil, poderia ter outro nome: "Distorção".

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  3. o que um escritor? o que é um intelectual?
    o que é uma celebridade? umj comentarista?
    vou criar um Festival com Dr. Dráusio Varella, Arnaldo Jabor, Monica Bergamo e Luis Nassif;
    os quatros são imensos ´´formadores de opinião´´,mas não se arvoram se considerarem escritores....

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  4. Diminuir o tamanho da ilha - tese da excludente participação, aumentando o mar que a rodeia - desqualificando debatedores, "vitimizando-os" com antítese do uso do "ego", apenas inibirá que o "alter ego" - "pessoa de inteira confiança" habite um coração contrangido. Ele ficará desabitado. Ricardo Rutigliano Roque.

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  5. apenas com nomes da literatura ficcional sabemos que não se faz um festival, ainda mais em Santos. Não sejamos hipócritas em achar que todos consomem vorazmente ficção e sobretudo ficção brasileira underground...e quem consome, lê, mas não compra.

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  6. Concordo com Alessandro quando diz que o evento pode abrir mais espaço para os de cá. Contudo, fazer é melhor do que não fazer.

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