sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ademir Demarchi

Depois de dezenas de horas em estradas esburacadas ou cuidadosamente pedagiadas, mas sem segurança, eis que se chega à visão feliz do tão sonhado peru estatelado na mesa na noite de natal. 

A visão parece irreal, ainda marcada pela disputa de velocidade por centenas de quilômetros com inúmeros outros terráqueos que tiveram a mesma ideia. As luzes dos veículos se movendo como lagartas na estrada ainda latejam e se misturam a uma inimaginável quantidade de caminhões que ficam indo e vindo nessas estradas carregados de tranqueiras, porcos e perus para consumo. 

Os presentes vão se abrindo e vão saindo de dentro dos papéis coloridos brinquedos de plástico vindos da China, inúmeros objetos, muitos inúteis, para serem logo esquecidos, depois de terem ido e voltado em contêineres, em navios e naqueles caminhões incessantes que parecem ter distribuído também na mesa farta algo de suas cargas. 

Eis algo ali naquele peru e naquele porquinho engordados no Sul, naquele pêssego em calda vindo da Argentina, no vinho ensolarado no Chile e nos desejos de felicidade que sugerem vir do peito de cada um. De repente todos se reúnem em torno da mesa, dão-se as mãos e rezam um “pai nosso” que já não parece ser de todos, cada vez mais diferentes ainda que iguais com o tempo, incrédulos, alternativos, materialistas, evangélicos, espíritas e espíritos de porco. 

O que importa é que o encontro se concretizou e todos estão sorrindo enquanto o peru que já não pode mais sorrir vai desaparecendo pelas bocas sorridentes. Atualizam-se as novidades, fica-se sabendo de uma separação, de uma gravidez que um quer e outro não quer, dos últimos feitos dos novos netos, o que aconteceu e que importou no ano que passou e os planos de cada um para o ano novo. 

Mostram-se fotos e cada um se mede no outro. Alguém traz um álbum de fotos da filha de três anos, ricamente produzido na pré escola, em que a criança aparece vestida de gueixa, de balzaqueana com coque, de vamp com o ombrinho ladeado de peles neste país tropical mas posto estudadamente de fora por alguém que parece ser um voyeur pedófilo erotizando crianças recém nascidas. Fica-se sem saber se são mesmo lindas as fotos ou um se são alguma espécie de atentado boiando nessa superfície de normalidade instituída pelo panetone alegre de frutinhas sobre a mesa.

Num canto extremo aguarda sentado o extremo da família, os tataravós que perseguem um século a unhas e dentes, à base de todo tipo de antibiótico, mesmo com esclerose, alzheimer e o que mais se imaginar. 

A velha sempre vestida para sair para festa, desde que sai da cama, mesmo que seja para passar o dia no sofá, tendo sempre ao lado a sua melhor bolsa. Eternametne sentada de frente para o velho, que já não vê, mirando no infinito, para não se chocar, se levanta para ir ao banheiro, para ir à mesa, para ir à cama. 

O velho que não é visto, sentado numa cadeira de rodas, esquelético, a boca aberta o tempo todo, já sem dente algum, com os olhos gelatinosos, apenas um cérebro parece se mover nele, transformado numa sopa de sensações do que se passou em sua vida, que ficam se remexendo como visões, que o fazem reagir repentinamente chamando a mãe para o acudir. 

A ceia, quase totalmente devorada, sobreviverá para o almoço do domingo, pois foi planejada com fartura para novo encontro, já mais leve e liberado das convenções. Após ela se retoma o ciclo da correria: os carros, as estradas, as centenas de quilômetros até o próximo fim de semana quando se dará a maior queima de fogos de todos os tempos em homenagem aos 7 bilhões de terráqueos que sobreviveram ao natal e estão prontos para o ano novo.

Nota do autor (enviada em 29/12):
Eis a última crônica do ano, retornarei em fevereiro.

De um dos delírios natalinos, nesta última crônica, um féretro: o velho mencionado finalmente morreu hoje, no dia da publicação do texto, encerrando uma longa e boa vida aos 90 e tantos anos. Tive a felicidade de compartilhar ótimos momentos com ele e devo te-lo mencionado em alguma crônica antes pois foi uma pessoa interessante, simples, feliz. Se ele não pôde ter um feliz natal, no estado deplorável a que chegou, morto em sua indecisão de ir-se, tendo decidido, finalmente, terá no entanto um ótimo ano novo.

Cada vez mais incrédulo e duvidando de tudo, nem posso me dar ao luxo de dizer "descanse em paz" pois para mim isso é algo que se diz para os que ficam, que descansamos dele e com isso refiro-me apenas aos anos finais de preparo para o encerramento de atividades, que foram pesados, pois os anos em que ele tinha vitalidade foram ótimos de conviver com ele. Espero, tirando de mim a mortalha rude das palavras, voltar a escrever sobre ele em tom mais lírico e "humano". De nós que ficamos, ainda vamos carregar alguns caixões anos à frente. E se lhe couber de ser o meu antes que o teu, desejo que seja leve.

Como apenas o ano na folhinha do calendário será novo, desejo contínuas felicidades até que a morte nos separe.

Grande abraço e até fevereiro, se aqui eu estiver, bem entendido.

 

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