sexta-feira, 18 de maio de 2012


Alessandro Atanes *

Fachada da sede da editora, no bairro
de La Boca, em Buenos Aires
Entre 2001 e 2002, a Argentina entra em uma de suas crises mais agudas. Presidentes caíam às pencas, ninguém sabia o que iria acontecer, outros países por menos entrariam em guerra civil. O preço do papel, e da produção de livros, vai para o espaço, o mercado editorial pára. Homens e mulheres perdiam seus trabalhos, a população tomava as ruas em panelaços que ainda repercutem pela Avenida de Maio.

Nesse momento, autores e catadores de papelão (cartón) se unem e dão início à editora de livros artesanais Eloísa Cartonera, com o lema “muito mais que livros”. O processo é simples: o miolo dos livros é impresso em impressoras caseiras ou copiado em xerox e as capas são feitas com o papelão e pintadas uma a uma pelos integrantes do grupo. Nascia aí um fenômeno editorial que se multiplicou por toda a América Latina: as editoras “cartoneras”. Dez anos depois, são mais de 300 títulos publicados, 200 em catálogo, milhares de exemplares distribuídos e quantidades imensas de papelão reutilizadas. Assim eles contam seu início:

Quando começamos com Eloísa Cartonera, não podíamos imaginar um presente tão lindo. Começamos com a crise desses anos; como alguns dizem “somos um produto da crise”, ou “estetizamos a miséria”, nem uma coisa nem outra, somos um grupo de pessoas que se juntaram para trabalhar de outra maneira, para aprender com o trabalho um montão de coisas, por exemplo o cooperativismo, a autogestão, o trabalho para o bem comum, como mobilizador de nosso ser. Nascemos nesta época louca em que temos que viver, como muitas cooperativas e empreendimentos, assembleias, agrupações de bairro, movimentos sociais que surgiram naqueles anos por iniciativa das pessoas, vizinhos e trabalhadores. Aqui estamos.

Em 6 de maio, no diário Página12, ao analisar a retomada da empresa petrolífera YFP pelo governo argentino, o jornalista Mario Wainfeld escreve uma pequena história das crises argentinas nas últimas décadas, “Vinte anos depois”, desde 1991 e a paridade do peso com o dólar, passando pela implantação do neoliberalismo no governo Menem. Wainfeld contextualiza o momento do nascimento da Eloisa Cartonera:

A crise de 2001 aprofundou o desamparo de amplíssimos setores sociais e desnudou a falácia do modelo existente. A resposta social, por múltiplos motivos, teve um tom diferente do que foi primazia nos anos 90. A experiência adquirida, a extrema pobreza e a falta de representatividade política despertaram reflexos comunitários, de profundas (e adormecidas) reminiscências históricas. Proliferaram as organizações de desempregados, as assembleias, comedorias e “roperitos” [cômoda, no caso lugar para trocar roupas] populares, os clubes de trocas. Tiveram viabilidades bem diferentes, possivelmente relacionadas com a profundidade de suas raízes sociais. Mas compartilhavam um ethos solidário e cidadão. Não era imaginável, nem desejável, salvar-se sozinho ou escapar um por um do incêndio.

Julian Gonzalez, um dos que estão com o projeto desde o início, afirma que nada muda para a Eloísa Cartonera com a reorientação do governo federal do neoliberalismo nos 90 para a retomada do controle estatal da YPF em 2012. “Temos nossas preferências políticas individualmente, mas a política da Eloisa Cartonera é o trabalho. Vamos continuar fazendo livros da mesma maneira”.

Se os panelaços e assembleias populares se limitaram a Buenos Aires, o mesmo não se deve dizer do sistema de trabalho da editora. Hoje, são mais de 30 “cartoneras” espalhadas pela América Latina (aqui em Santos são três: Sereia Ca(n)tadora, Edições Caiçaras e Estação Catadora) e algumas também na Europa (Berlim, Paris e Londres). Uma pequena lista mostra a riqueza de nomes: ainda na Argentina temos a Textos de Cartón (Córdoba) e Cartonerita Solar (Neuquén), no Uruguai a La Propia Cartonera, no Chile Animita Cartonera e La Cizarra Cartonera, no Paraguai Felicita Cartonera e Yiyi Yambo, na Bolívia Mandrágora Cartonera, Yerba Mala Cartonera e Nicotina Cartonera, no Equador a Matapalo Cartonera, na Colômbia Patasola Cartonera, no Peru Sarita Cartonera, em El Salvador La Cabuda Cartonera e no México a Santa Muerte Cartonera, La Cartonera, La Ratona Cartonera e Regia Cartonera, entre outras, além das brasileiras Katarina Kartonera, em Florianópolis, Rubra Cartonera em Londrina e a iniciadora da prática no Brasil, a Dulcinéia Catadora, de São Paulo.

Na galeria abaixo, fotografias feitas por mim e Márcia Costa em visita à Eloisa Cartonera em 5 e 7 de maio.






Como muitos brasileiros têm viajado para Buenos Aires, vale deixar aqui uma dica. A Eloísa Cartonera fica no bairro turístico de La Boca, ali onde fica o Caminito, na Rua Aristobulo del Valle, 666, a 100 metros do estádio do Boca Juniors. É só se apresentar a fazer um livros junto com eles.

* Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.

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