quinta-feira, 24 de maio de 2012


Alessandro Atanes *

I O pianista no mar
Na segunda edição da revista guaiaó (foto), lançada nesta quarta-feira (23), um texto de Flávio Viegas Amoreira, acompanhado por um desenho de Paulo von Poser, trata do filme A lenda do pianista do mar (1998), de Giuseppe Tornatore, e seu protagonista: uma criança encontrada dentro de um navio de cruzeiros internacionais na virada do século XIX para o século XX – e, por isso, recebe o nome de 1900. Adulto, ele se torna o pianista da embarcação. É descrito no texto assim:
Tim Roth, o personagem central leva o nome de 1900, é um anti-Ulysses sem ter referência para onde voltar, além de ser navegante observador de todos os cantos da Terra com a perspectiva do Mar: ele é tão marítimo que perde mesmo sentido do Oceano por estar nele contido naturalmente. Não defronta o mar, torna-se contingente de calmarias e intempéries como um pastor num bosque ou transeunte na Quinta Avenida...
É o que ocorre na cena em que 1900 destrava as rodas do piano para tocar junto a uma tempestade que balança o navio e tudo dentro, enquanto deslizam calmamente pelo salão o piano e seu pianista, “contingente de calmarias e intempéries”. Esse homem que vive às margens da terra firme e suas sociedades, afirma o autor, tem como casa o mar, “símbolo uterino candente” no qual “o porto é um não-lugar que convida ao retorno viajante”. Amoreira lembra-se do poeta grego Giorgos Seféris:
Não sabemos que somos todos marinheiros sem destinoNão sabemos como o porto é amargoQuando todos os barcos partiram
Passamos no texto também pela abertura de Moby Dick (1851), a “catedral literária de Melville” e pelo poema Brisa Marinha, de Stéphane Mallarmé (1842-1898): “A carne é triste, e eu li todos os livros, todos”. Abaixo, a tradução da primeira estrofe feita por Augusto de Campos:
A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
(leia aqui o poema inteiro)
II Em espanhol
Pela manhã, também ontem, lia textos de El gaucho insufrible (2003), de Roberto Bolaño (1953-2003), reunindo contos como o que dá título ao livro e duas conferências. Na primeira delas, Literatura + enfermedad = enfermedad (Literatura + doença = doença), o autor chileno comenta a versão em espanhol do mesmo Brisa Marinha, feita por Alfonso Reyes:
Creio que Mallarmé está falando da doença [enfermedad], do combate que a doença trava contra a saúde, dois estados e duas potências totalitárias, como quiserem; eu creio que Mallarmé revestida com os trapos do tédio.
Essa observação está no trecho que se chama “Doença e poesia francesa”, no qual, na parte inicial, Bolaño retoma a virada entre os dois séculos:
A poesia francesa, como sabem bem os franceses, é a mais alta poesia do século XIX e de alguma forma em suas páginas e em seus versos se prefiguram os grandes problemas que iriam afrontar a Europa e nossa cultura ocidental durante o século XX e que ainda estão por resolver. A revolução, a morte, o tédio e a fuga podem ser esses temas. Essa grande poesia foi escrita por um punhado de poetas e seu ponto de partida não é Lamartine, nem Hugo, nem Merval, mas Baudelaire. Digamos que se inicia com Baudelaire, adquire sua máxima tensão com Lautréamont e Rimbaud, e finaliza com Mallarmé.
Nota de rodapé
Além do texto de Flávio Viegas Amoreira, guaiaó traz ainda um relato de Søren Knudsen sobre um transatlântico alemão, o SS Windhuk, que, em 1939, início da Segunda Guerra Mundial, chega ao porto de Santos disfarçado sob bandeira japonesa fugindo de um cruzador britânico; e Terra Nova, um conto de Cid Marcus Vasques sobre a chegada de imigrantes portugueses ao porto de Santos no início dos anos 1900. Agitado esse século, não? Acabemos com ele, então, 1900, na cena em que toca piano com o navio sob tormentas e vagas:


* Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.

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