quarta-feira, 15 de maio de 2013

Galia Gálvez
Tradução Alessandro Atanes
Publicado originalmente na edição de 15 de maio do jornal La Republica, de Lima, Peru

Hoje é o aniversário de 50 anos do desaparecimento do poeta guerrilheiro Javier Heraud. Morreu baleado por 19 tiros de balas dum dum por forças do governo. Alaín Elías, seu amigo e companheiro de luta, e Víctor Zambrano lembram desses momentos de 15 de maio de 1963. 

O poeta e guerrilheiro Javier Heraud morreu há 50 anos baleado no rio Madre de Dios. Alaín Elías e Víctor Zambrano lembram agora do fato: o primeiro estava com o poeta, na canoa, como companheiro da aventura guerrilheira, e o segundo era um adolescente que olhava com estupor como membros da Guarda Republicana e da população disparavam contra o poeta que havia escrito premonitoriamente “Eu nunca rio/da muerte./ Simplesmente/ acontece que/ não tenho/ medo/ de/ morrer/ entre/ pássaros e árvores”.

Naquele momento, Víctor Zambrano, hoje jornalista e defensor da causa ecológica em Puerto Maldonado, era um adolescente de 17 anos e, como parte da população que se encontrava comovida pelo desdobramento militar nunca antes visto na cidade, queria saber o que acontecia. De curioso, meteu-se entre a ribeira do rio Madre de Dios e viu como dois jovens brancos, um bem alto, olherudo e outro que comandava, tentavam escapar em uma canoa que não podiam controlar, enquanto choviam neles balas das duas margens do rio.

Perto das 10 da manhã, Javier e Elías encontravam-se entre as árvores quando subitamente vários disparos  eclodiram perto deles. A polícia os fazia retroceder. Desesperados, escapam em direção a uma escarpa junto ao rio. Arriscam tudo: ou se lançam ao rio ou perdiam a vida. O Madre de Dios tem mil metros de largura.

“Para nos animar mutuamente dizemos então ‘este rio é suave’. Mas não, sentimos o contrário ao cair em suas águas”, lembra Elías.

A corrente interna é intensa e golpeia. O calor se aviva em Puerto Maldonado e o contato com a água os leva a um estado eletrizante. “Várias balas estouram bem perto de nós”, detalha Alaín.

Nadam por suas vidas. Em un momento, diz Zambrano, os braços do jovem poeta se cansam e ele se deixa levar por seu companheiro. Flutua quase à deriva sobre sua bolsa de couro, extenuado. A polícia subiu em uma lancha para pegá-los. A população, atiçada, também atira neles. Sentem a vibração que deixa cada impacto na água. “Alaín é ferido no pescoço e não pode mais remar”, lembra o jornalista.

Víctor Zambrano, de onde estava, observa que os jovens estão dispostos a se render e que pedem a gritos que parem com os disparos. Observa como a canoa viaja à deriva e que os rapazes  – o mais alto – pedem cessar fogo e em momentos tentam responder ao ataque. “Remavam e remavam mas não podiam até que a canoa à deriva chegou à metade do rio perto daa desembocadura do rio Tambopata”. Os garotos amarraram uma camisa branca em um dos remos em sinal de paz.

Javier olha seu companheiro como se estivesse a ponto de saltar de um penhasco. Levanta devagar sua arma e a coloca sobre sua têmpora. “Não há nada a fazer, Alaín; olha, a população também atira em nós…”. O poeta levanta o remo com a camisa branca amarrada, mas os tiros não cessam. “Alaín, me acertaram”. Uma primeira bala perfura a clavícula do jovem poeta. “Aguenta”, grita Alaín.

Um “Altooo… não disparem” se ouve do rio.

No momento em que o poeta pede que parem os disparos, uma bala “dum dum” perfura suas costas e sai pelo seu peito, deixando uma marca em forma de flor. Cai encostado e todo o fogo volta-se sobre ele. Alaín pensa que Javier desmaiou. No interior da canoa a água que se infiltrou até a metade está tingida de vermelho e começa a tingir o rio.

Uma lancha da Guarda Republicana chega perto deles. “Ele ainda pode viver”, pensa Alaín, “ainda respira”. O sol cega. Um oficial tenta fulminá-lo, mas é detido por seu subalterno. Javier está calado, tem 19 disparos em todo o corpo, quase a mesma idade que possui.

A população curiosa se reúne na margem do rio quando os policiais trasladam os abatidos. A canoa é uma tina de sangue. Javier e Alaín são levados em uma manta até uma camionete. Os pássaros começam a cantar junto ao rio, volta também o rumor de árvores no vento quando os disparos terminam. O poeta havia entregue sua vida por um ideal.

Um poema de Javier Heraud

O advento do outono


 ... no advento do outono...
Pablo Neruda

Por que o sono
há de nos transportar
através de regiões
que não desejamos,
que não pedimos,
regiões a que nunca aspiramos?

Ah, outono da grama,
torna-te presente
para que assim possamos
pisar no jacarandá,
nas macieiras
e nas parreiras,
e assim possamos
formar rios de sangue
molhado pelas ruas,
e afogar homens
e crianças nas portas
das flores.

Sono, deixa-nos imaginar
o outono próximo,
o outono
que se aproxima!


Sobre Javier Heraud
Alessandro Atanes, texto de apresentação do autor incluído no livro À espera do outono / Viagens imaginárias, publicado em 2012 pela editora artesanal Sereia Ca(n)tadora.

O Centro de Estudos Peruanos publicou há pouco tempo uma pequena tiragem do longo poema  O Rio  (1960), primeira obra de Heraud publicada em livro no Brasil. Em 1961, publica seu segundo livro, El viaje, e dividiu com César Calvo o prêmio Poeta Jovem do Peru, dado pela revista Cuadernos Trimestrales de Poesía, publicada em Trujillo.

Nascido em Lima em 1942, Javier Heraud teve uma vida muito curta, escreveria poemas apenas por mais dois anos, até ser baleado em 15 de maio de 1963, no rio Madre de Dios, passando pela cidade de Puerto Maldonado, quando atuava junto ao Exército de Libertação Nacional do Peru após um crescente envolvimento com os ideais revolucionários que se inicia com uma viagem à Europa, convidado pelo Fórum Mundial da Juventude que ocorreu em Moscou, e passa por uma viagem a Cuba para estudar cinema.

En espera del otoño, última seção de Estación Reunida, e Viajes imaginarios foram escritos em 1961 e publicados em 1964 em seu primeiro volume de obras completas. Os dois textos foram trazidos ao português a partir do volume Poesía Reunida (2010), da Editora Peisa, que fixou o texto das duas obras a partir das versões publicadas em 2008 pela editora Mesa Redonda, com prólogos e notas de Edgar O’Hara.

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