segunda-feira, 24 de junho de 2013

Márcia Costa

Em Algumas Histórias, obra-homenagem a Paulo José
Eu o vi pela primeira vez no palco na estreia de Algumas Histórias, peça que ele criou inspirado na obra-vida de Paulo José. Em cena, o ator e dramaturgo Bruno Fracchia transborda encanto e frescor, típicos de de um jovem apaixonado pelo fazer artístico, capaz de nos levar, junto com ele, para um lugar pleno de emoções. Mais do que uma homenagem a Paulo José, a peça é uma homenagem ao próprio ofício do ator.

O resultado alcançado por Bruno na peça não é apenas fruto de um grande apuro de sensibilidade ou intuição, mas de muito trabalho. Bruno é um ator consciente que a necessidade do estudo é permanente. A ECA (USP) integra um rol de experiências que ele acumula ao longo de seus 15 anos de carreira – foi lá, conta, que ampliou sua visão sobre o teatro,  onde começou a pensar teatro além da estética e a enxergar o papel social que todo ator exerce.

Para além dos muros da academia, este jovem mostra que o resultado do trabalho de um ator no palco é, como ele reforça, "reflexo de todo o seu procedimento fora dele".

Como o teatro entrou na sua vida? Que nomes te inspiraram?

O teatro entrou em minha vida por conta da televisão! Desde sempre fui uma criança noveleira! Que Rei sou Eu?, Top Model, Tieta, Vamp, Pedra sobre Pedra...  estas e outras novelas trazem lembranças muito vivas de minha primeira infância. Cresci e virei um adolescente noveleiro. Foi pela vontade de fazer novelas que fui parar no teatro. Chegando ao teatro, desde o começo me dediquei a preparar em casa exercícios e cenas para apresentar em aulas, a estudar personagens e autores para me sentir mais seguro em cena e acabei me envolvendo com essa arte de tal forma que não imagino minha vida sem ser ligada às artes cênicas.

Pelo fato de ter sido uma criança e um adolescente noveleiro, os artistas que se tornaram minhas inspirações primeiras são atores que conheci através das telenovelas: Tony Ramos, Lima Duarte, Raul Cortez, Antônio Fagundes, Osmar Prado, Carlos Vereza e Eva Wilma são alguns dos nomes que recordo com muita admiração como inspirações primeiras de um Bruno adolescente, iniciando-se nesta jornada artística.

Na novela Amigas e Rivais, do SBT (2007)

O que é fazer teatro em Santos?

Meu olhar a este respeito é muito particular e, infelizmente, não deve dar conta de uma macrovisão do teatro santista. Em minha opinião, fazer teatro é difícil em qualquer lugar do mundo. No entanto, as dificuldades para a prática teatral em Santos também apresentam muitas particularidades (a política cultural de Santos é de eventos, não existindo um projeto de fomento à produção e circulação das criações artísticas e, tampouco, um projeto cultural pensado a médio e longo prazo).

No curta Cansei
Considero muito difícil fazer teatro em Santos, entre outros aspectos, pela dificuldade da classe artística (não só teatral) assistir teatro, pela enorme dificuldade de se difundir em processos de formação de atores uma pedagogia que estimule a autonomia artística dos estudantes e também a conscientização de que a necessidade do estudo é permanente (não existe “ator formado”. O artista está sempre em processo).

Mas fazer teatro em Santos é também conhecer gente que realmente é de teatro, que muitos nos ensinam e que desenvolvem trabalhos que, caso apresentados nos grandes centros, concorreriam facilmente a prêmios como Shell e APCA.

Em ação como um homossexual autor de novelas, desfilando pelo SESC-Santos, na conclusão da oficina de clown clandestino (2013)

Fica muito latente em você uma busca pelo aprofundamento, pela formação. Conte um pouco sobre o que aprendeu.

Me formei em Teoria do Teatro na ECA há um ano e meio. Posso dizer que, para os rumos que minha carreira tomou, é crucial a importância desta minha formação. Não fosse minha passagem pela ECA não poderia dizer que verdadeiramente tenho uma formação teatral (embora isto não necessariamente tenha a ver com diploma).

              Com o mestre Aguinaldo Silva e Maria Elisa Berredo (2009)
Não fosse a ECA, Algumas Histórias (meu atual espetáculo e aquele que considero o grande projeto dos meus 15 anos de teatro) sequer teria sido pensado. Antes da ECA eu não tinha algo básico para qualquer artista: referências. Tal como um fanático religioso, acreditava que apenas um único tipo de teatro era o certo (tipo de pensamento que é a morte para qualquer artista). Na ECA aprendi a não ter uma visão limitada da arte teatral e a encarar e escrever críticas de teatro não como avaliações, mas como reflexões sobre o fazer artístico.

Em 2006, participando do curta-metragem Terapias (argumento de Bruno Fracchia, que também fez o roteiro junto com Nuno Leal Maia, diretor do curta).
Foi também na ECA que aprendi a pensar teatro além da estética e que enxerguei o papel social que todo ator (famoso ou não) exerce (querendo ou não querendo).  Embora meu bacharelado tenha sido em Teoria do Teatro, não tenho como negar a contribuição de meus anos na universidade também em meu trabalho de ator, destacando em especial as aulas de voz com Zebba, Yeda e Cadu Witter, as aulas de corpo com Luzia Carion e as aulas de Improvisação e Interpretação com Lucienne Guedes e Maria Thaís. Em suma, não fosse a ECA, não seria nada do que sou hoje. Para o bem e para o mal, ninguém passe impune por lá!

Conte sobre o processo de criação de Algumas histórias - desafios, técnicas utilizadas, soluções para o cenário, figurino, criação do personagem (sem caricaturização) etc. Como tem sido a repercussão da peça?

Hoje entendo e enxergo a peça como, de certa forma, a minha forma de responder aos estímulos e conhecimentos aprendidos, apreendidos e absorvidos nos cinco anos em que estive na ECA.

A primeira questão a ser pensada neste processo foi identificar o objetivo da montagem (compartilhar com o maior número de pessoas possível histórias e pensamentos artístico de Paulo José e transmitir uma mensagem de esperança a portadores de deficiências e a familiares de pessoas que provisoriamente se encontram em hospitais ou em casa em processo de recuperação). A partir daí, no segundo semestre de 2010 comecei a pensar em balizas iniciais para estruturar o trabalho e dar referências para as criações de equipe artística.

No longo processo de imersão que eu sabia que enfrentaria, dois grandes desafios surgiram logo de cara: a necessidade de comunicar o maior número de informações possíveis a respeito de vida e obra de Paulo José indo além da dramaturgia e a vontade de apresentar em cena práticas contemporâneas. Como fazer isso?

Foi a partir destas perguntas que os aspectos da futura peça de teatro começaram a ser pensados. Assim, a trilha contém algumas músicas (a maioria de domínio público) utilizadas em trabalhos de Paulo José e que no espetáculo aparecem ressignificadas. O espaço cênico pensado em meia-arena surgiu como uma possibilidade de comunicar ao público sensorialmente a relação palco-plateia do Teatro de Arena.  O hábito de Paulo José em acidentalmente colecionar chapéus ao invés de ser informado textualmente é posto em cena de forma visual.

E a “obra em processo” é levada ao pé da letra na estética da peça (os elementos cenográficos e adereços, por exemplo, estarão sempre sujeitos a acréscimos. Agora mesmo, acabo de encontrar o programa original de Arena conta Zumbi e na próxima apresentação ele já estará em cena).

Em relação à criação de personagem, passamos por várias fases e ideias. Inicialmente, não queria de forma alguma interpretar Paulo José. Caracterizar-me como ele seria um sacrilégio e um desrespeito com o próprio público (afinal, o artista está vivo e para colocar Paulo em cena, ninguém melhor que o póprio. Além disso, o ilusionismo do envelhecimento e da maquiagem e pintura branca nos cabelos cairia muito bem no cinema ou num outro tipo de teatro, mas não na estética que nós escolhemos).

No entanto, os experimentos nos levaram a uma interpretação que evoca a imagem de Paulo José  sem o equívoco da caracterização e a um diálogo entre a história de Paulo José e sua geração e a de gerações de artistas mais jovens, representadas em cena por minha própria história de vida.

Como inspiração inicial para a construção de meu trabalho em cena me veio à lembrança uma conversa/ensinamento de Cleyde Yacónis. Num dia, num intervalo de aula, ela disse que para interpretar uma viciada em morfina em Longa Jornada noite Adentro, ela foi conversar com um médico para saber sintomas e traços físicos de uma pessoa viciada em drogas (por este trabalho,Cleyde ganhou inúmeros prêmios). Esta lembrança me levou a me sentir na obrigação de conhecer portadores de Parkinson para, ainda que fisicamente não viesse a evocar a doença, mergulhar no universo e ter uma dimensão maior da realidade dos portadores de Parkinson. Foi um trabalho desenvolvido durante quase dois anos e do qual muito me orgulho, lembrando com muito carinho das pessoas com as quais trabalhei (dedicando também a elas ao espetáculo).

Cena de Algumas Histórias
Para evocar Paulo José em cena, assisti e "reassisti" a muitos filmes com o artista, a cenas de novelas e a entrevistas dele. Em termos técnicos, em 2010 após um semestre de trabalho de voz incrível na faculdade, convidei o professor Cadu Witter para iniciar um processo de preparação vocal para o projeto.

Ainda tratando do trabalho vocal, pus-me o desafio de cantar no espetáculo. Sem nunca ter cantado na vida, fui salvo pelo trabalho primoroso e dedicado de Claúdia Rodrigues ao longo de pouco mais de um ano de aulas e ensaios.

Como na faculdade tive noção de que pouco pensava no trabalho corporal, procurei o apoio de Célia Faustino e frequentei (e ainda frequento) suas primorosas aulas de Eutonia!

Tudo poderia ter ficado apenas uma miscelânea bem intencionada. Mas, felizmente, o projeto conquistou o olhar de Paula d´Albuquerque, de quem compartilho muitas ideias de pensamento teatral e que num curto espaço de tempo captou a essência do projeto, dando-nos um norte para direcionar o trabalho ! Assim chegamos a unidade apresentada em cena.

Por todo este pensamento estético e racionalidade, tinha muito medo do espetáculo ficar hermético! Felizmente, isto não ocorre. O público ri, se emociona, muitos fãs de Paulo me abraçam emocionados; pessoas que não conhecem o artista se envolvem na história da mesma forma e se tornam admiradores dele. No final de tudo, após praticamente sei anos de idealização, conseguimos um espetáculo humano!

O que Paulo José, como homem e como ator, significa pra você?

Paulo José para mim é o autor da maior declaração de amor que já vi aos palcos. Mesmo estando em situação artística e financeira confortável, consagrado e sem precisar provar nada a ninguém, ao não se curvar a doença de Parkinson e subir aos palcos, ele nos dá uma demonstração inquestionável de amor ao teatro. E à vida. Assim, ainda que não fosse o maior ator da história do cinema brasileiro, um dos mais talentosos diretores da televisão brasileira e não tivesse feito parte de um dos mais importantes grupos de teatro da história do teatro brasileiro, “apenas” por este exemplo, ele já mereceria ter sua história retratada nos palcos.

O  artista total.
Artisticamente, ele representa para mim também um mentor distante. Um interlocutor em quem penso como um professor mais velho, tal como o mestre de Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke (outra das maravilhosas descobertas proporcionadas pelo CAC – Departamento de Artes Cênicas da ECA).

Ao ler Memórias Substantivas (a biografia de Paulo José) imediatamente me identifiquei com os pensamentos estéticos dele. Em especial, com sua visão do ator como necessariamente um “artista total”, não especializado, não limitado à função de atuar. Mesmo agora, já com idade e portador de Parkinson, li entrevista de filha dele dizendo que, se deixarem, ele pega refletor, carrega cenário, etc! Isso é ser ator! Isso é ser artista! Impossível não te-lo como uma referência!

Quais os seus próximos projetos?

Quero viajar muito com este espetáculo. Espero ganhar outros editais e excursionar com a peça pelo Brasil, realizando temporadas em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Paralelo a isso, tenho o objetivo de desenvolver trabalhos e estudos no exterior (para adquirir outras bagagens artísticas), cursar um mestrado e, claro, como nunca desistirei de realizar trabalhos como ator em novelas (quem sabe um dia ao lado de Tony Ramos e do próprio Paulo José?), pretendo voltar a buscar oportunidades em televisão como ator e dramaturgo.

Uma vez li o Fagundes dizer que um ator para estar formado leva 10 anos. À época achei exagero. Agora que completo 15 anos de teatro, tendo ficado cinco na faculdade, posso dizer que, na prática, cheguei agora ao 10º ano, não só concordando com o Fagundes, como ainda achando que para a aquisição de uma base, pode até ser que um ator leve ainda mais tempo. Ou seja, estou só começando. Quero ainda fazer e aprender muitas coisas. 

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