terça-feira, 1 de abril de 2014

Adelto Gonçalves (*)

Em 1964, eu tinha 12 anos de idade e assisti ao golpe militar da janela de minha casa. A morada de meus pais era no Largo Teresa Cristina, 27, defronte para o prédio do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, localizado à Rua General Câmara, cuja lateral direita dava para a praça. Foi por ali que chegaram os soldados da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente armados. Da janela, vi como alguns daqueles homens de uniforme azul com metralhadoras em punho e longos bastões – que no cais eram mais conhecidos como “pés de mesa” – escalaram o muro dos fundos do sindicato, assumindo posições estratégicas.

 Depois, ouvi o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebi algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao golpe.

Mais tarde, ainda da janela, pude perceber uma aglomeração na Rua General Câmara com o Largo. Então, tomei coragem e desci à rua e vi quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do sindicato desceram as escadarias, sob a mira de metralhadoras, e entraram numa espécie de “corredor polonês” aos tapas e pescoções em direção a um caminhão coberto. Entre eles, lembro-me de ter visto Manoel de Almeida, que era o presidente do sindicato, e Rafael Babunovitch, diretor. Com outros diretores e alguns associados solidários, seriam conduzidos para o navio-prisão, que por muitos dias ficaria ancorado em frente ao porto de Santos com sua presença ameaçadora, tal como uma forca na praça principal de uma pequena cidade.

 Eu não sabia por que aqueles acontecimentos se davam, mas a minha solidariedade era para com aqueles que eram agredidos a caminho do caminhão. Em 1961, eu havia me formado na escola primária do Sindicato dos Operários Portuários, com 10 anos de idade. Eu ingressara na escola não porque meu pai trabalhasse na Companhia Docas, mas porque ela ficava perto de casa e um amigo da família, portuário, havia se proposto a me apresentar como seu sobrinho. De modo que houve um arranjo para superar as normas, já que a escola, a princípio, só poderia ser cursada por filhos de portuários. E o meu pai era dono de um pequeno armazém de conserto de sacaria de café na Rua Tuiuti, 34, na beira do cais do Valongo.

Fosse como fosse, saí daquela escola como um de seus melhores alunos. Ao final de 1961, o então presidente da República, João Goulart (1919-1976), fez uma visita ao sindicato e, na ocasião, cumprimentou uns três ou quatro daqueles alunos que haviam recebido medalha de aplicação ou de honra ao mérito. Eu fui um deles. Lembro-me ainda hoje do cumprimento dado pela mão suarenta do presidente.

Naquele ano de 1964, eu cursava o segundo ano ginasial no Colégio Comercial Coelho Neto e assistira, indiferente, à pregação de uma professora que costumava angariar adeptos para as manifestações que a União Cívica Feminina organizava contra o governo Goulart. Até porque não nutria nenhuma simpatia por aquela gente.

Por acaso, também sem sair de casa, eu conhecera o prefeito de Santos, José Gomes (1920-1974), que teria o seu mandato cassado depois do golpe: via-o frequentemente cruzar o Largo Teresa Cristina em direção à Rua General Câmara a caminho de seu trabalho na Rádio Cacique, onde apresentava um programa. Certa vez, ele, com seu cabelo ruivo e voz tonitruante, parou à janela do porão de minha casa encantado com a vitalidade de meu cachorro, o Rick. E me fez algumas perguntas a respeito do cão.

Anos mais tarde, quando eu tinha 17 ou 18 anos de idade e sentei-me para escrever num caderno escolar os primeiros apontamentos para o romance Os Vira-latas da Madrugada, ainda no porão daquela casa do Largo Teresa Cristina, fui impulsionado por muitas dessas lembranças. Tanto Almeida como Babunovitch, “o homem de bochechas vermelhas” e que “parecia ter uma batata quente na boca quando falava”, são personagens que aparecem disfarçados, ao lado de tantos outros, naquele romance que reescrevi, dez anos mais tarde, à época em que era subeditor de Política na redação do jornal O Estado de S.Paulo.

O romance ganharia em 1980 uma menção honrosa do Prêmio José Lins do Rego da Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, e seria publicado no ano seguinte. Tantos anos depois, também seria vítima da ditadura militar. Lançado na sede da editora no dia 30 de abril de 1981, juntamente com outras obras premiadas pela comissão julgadora, o livro trazia um prefácio em que o jornalista Marcos Faerman (1943-1999) dizia que aquele “romance de sons delicados e histórias tristes” não agradaria “àqueles que venceram em 1964”. Àquele lançamento coletivo, estiveram presentes os ex-ministros Darci Ribeiro (1922-1997) e Eduardo Portela, o compositor Tom Jobim (1927-1994), cuja irmã Helena ganhara o prêmio principal do concurso, e ninguém menos que Luís Carlos Prestes (1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, por sinal, também personagem ocasional do meu romance.

Como se sabe, naquela noite, houve uma bomba que explodiu no RioCentro antes da hora e fez gorar uma tragédia que poderia ter provocado muitas vítimas. Talvez esse episódio tenha levado a editora a pensar duas vezes. Até porque, em dificuldades financeiras, estava sob intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Por isso, a edição foi recolhida à gráfica e o livro distribuído sem o prefácio. Guardo comigo, porém, um exemplar que traz o texto impresso.

A editora Associação Cultural LetraSelvagem, de Taubaté-SP, do escritor Nicodemos Sena, tem anunciado “para breve” uma segunda edição desse livro com o prefácio “censurado” e um estudo introdutório do poeta Ademir Demarchi. Espero que saia ainda neste ano. Por razões óbvias.

(*) Adelto Gonçalves, jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2012), entre outros.

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